UFPB - PSS 2011 - Análise das obras

O Judas em sábado de Aleluia, de Martins Pena
A obra O Judas em Sábado de Aleluia, de Martins Pena, é uma comédia de costumes, escrita no final do século XIX, contendo apenas um ato e doze cenas.
Martins Pena é um dos maiores dramaturgos brasileiros, o criador do Teatro Nacional. Na peça, ele zomba dos costumes sociais do Rio de Janeiro do século XIX, pois trata basicamente de um tema comum esboçado pelos autores românticos: das moças que buscam um noivo para si, bem como um reforço retratista da pequena burguesia: funcionários públicos, militares etc.
Dotado de singular veia cômica, soube aproveitar o momento em que se intensificava a criação do teatro romântico brasileiro, que possibilitava tratar das situações e personagens do cotidiano, e mostrou a realidade de um país atrasado e, predominantemente, rural, fazendo a platéia rir de si mesma. Seus textos envolvem, sobretudo, flagrantes da vida brasileira, do campo à cidade. Assim, apresenta com temas principais, os problemas familiares, casamentos, heranças, dotes, dívidas, corrupção, injustiças, festas populares etc. Sua galeria de tipos compreende: funcionários públicos, padres, meirinhos, juízes, malandros, matutos, moças namoradeiras ou sonsas, guardas nacionais, mexeriqueiros, viúvas etc.
Na peça fica patente a crítica de Martins Pena à sociedade hipócrita que semeia visões distorcidas daquilo que é em sua interioridade podre. Percebe-se a crítica à moral burguesa com os seus desejos e certezas. Fica clara ainda a figura da esperteza de Faustino. A história passa-se no Rio de Janeiro, no ano de 1844.
Personagens
José Pimenta, cabo-de-esquadra da Guarda Nacional; Chiquinha; Maricota e suas filhas; Lulu (10 anos); Faustino, empregado público; Ambrósio, capitão da Guarda Nacional; Antônio Domingos, velho, negociante; Meninos e moleques
Resumo
A história se desenrola na casa de Pimenta, cabo da guarda-nacional e pai de Maricota e Chiquinha. Estas duas moças, principalmente, Maricota sonham com o casamento. Sonho e desejo comum das jovens solteiras do século XIX. Para isso, resolveu namorar a tantos quanto pudesse. Isso permitiria a ela maiores oportunidades. Conforme ela mesma disse à irmã: Ora dize-me, quem compra muitos bilhetes de loteria não tem mais probabilidade de tirar a sorte grande do que aquele que só compra um? Não pode do mesmo modo, nessa loteria do casamento, quem tem muitas amantes ter mais probabilidade de tirar um para marido?
Já a sua irmã Chiquinha possuía uma atitude mais sôfrega. Não era dada a requestos tão intensos.
A história avoluma-se ou alcança um ponto inflexivo quando aparece a figura de Faustino à porta da casa para ter com Maricota. Faustino lamentoso, questiona o amor de Maricota por ele e afirma a infelicidade que habita a sua alma inquieta. Maricota diz que o ama. De repente chega o capitão da Guarda Nacional, que é um dos pretensos namorados de Maricota. Faustino assume o disfarce de Judas, que alguns meninos preparam para o Sábado de Aleluia. Portanto, este escuta a fala de Maricota com o capitão. Em seguida, chega ainda o pai de Maricota. Esta corre. Pimenta, o pai das duas donzelas, fica a tratar de negócios com o capitão. Conversam basicamente sobre a situação de indisciplina que anda a Guarda Nacional. Faustino disfarçado de Judas de aleluia escuta a conversa. O capitão retira-se.
Volta à sala a figura de Chiquinha para continuar a coser o seu vestido para a festa de sábado de aleluia. Em dado momento, esta suspira alto e confessa a sua paixão por Faustino. O rapaz deitado, disfarçado no chão, aproxima-se dela e é solidário ao amor da moça. Chiquinha sente-se envergonhada, mas se mostra crédula com a recepção do amor de Faustino. O pai retorna à sala, Chiquinha corre e Faustino se esconde. Pimenta dessa vez traz consigo a figura de Antônio. Os dois especulam sobre um negócio escuso que estão praticando no porto. E temem. Faustino absorve todas estas informações. Os dois homens temem ser descobertos pela polícia. Isso propiciaria um destino infausto. Faustino, deitado, ensaia uma voz que parece ser da polícia. Os dois encolhem-se de medo. Quando à porta bate o capitão. Pimenta e Antônio se atarantam. Finalmente, os três ficam juntos e entendem que algo misterioso se passava no interior daquela casa.
Os meninos que preparavam o Judas entram na sala para malharem-no. Faustino corre. Os presentes à sala se assustam com o espantalho que toma vida. Todos correm. Uns se escondem embaixo da mesa; outro sobe num móvel; outros ainda rolam no chão. Chiquinha não se altera por saber a identidade do espantalho Judas. De repente Faustino volta ao interior da casa ameaçado por algumas crianças que encontra na rua. Temendo a própria vida volta para ter com os que jaziam espantados. Martins Pena deixa transparecer a sua verve cômica nessa cena.
Começa a partir daí a vingança de Faustino. Este se põe no meio daqueles que dantes estavam espantados. O capitão, Antônio, Pimenta e Maricota ameaçam Faustino. Tal ameaça expressa claramente uma ignorância por parte dos personagens, que não têm conhecimento dos segredos adquiridos por Faustino. Este se apropria da fala e se vinga de cada um dos personagens. As suas intenções são manifestadas: Maricota se casa com Antônio (um velho). Suas intenções não graçam, não tomam vida. Ao cabo, Faustino beija o rosto de Pimenta, realizando o ato de Judas, o discípulo de Jesus, que o traiu com um beijo na face. Aqui o personagem ironiza e pede a mão de Chiquinha em casamento.

Cartas Chilenas, de Tomás Antônio Gonzaga

Cartas Chilenas é um conjunto de poemas, escritos em versos decassílabos e brancos, com uma metrificação parecida com a da epopéia, e circularam anonimamente em Vila Rica, entre 1787 e 1788, seus versos assumem um tom satírico.
É uma obra satírica, constituindo poema truncado e inacabado (13 cartas), na qual um morador de Vila Rica ataca a corrupção do Governador Luís da Cunha Menezes. Aponta as irregularidades de seu governo, configurando o ambiente de Vila Rica ao tempo da preparação política da Inconfidência Mineira. Em julho deste ano de 1878, Cunha Menezes deixaria o governo de Minas, em favor do Visconde de Barbacena.
Onde se deveria ler Portugal, Lisboa, Coimbra, Minas e Vila Rica, lê-se Espanha, Madrid, Salamanca, Chile e Santiago. Os nomes aparecem quase sempre deformados: Menezes é Minésio. Há apelidos e topônimos inalterados, como: Macedo, a ermida do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, a igreja do Pilar. O autor se dá o nome de Critilo e chama o destinatário de Doroteu. Finalmente, os fatos aludidos são facilmente identificados pelos leitores contemporâneos.
A matéria é toda referente à tirania e ao abuso de poder do Governador Fanfarrão Minésio, versando a sua falta de decoro, venalidade, prepotência e, sobretudo, desrespeito à lei. Afirmam alguns que o poema circulava largamente em Vila Rica em cópias manuscritas.
Critilo (Tomás Antônio Gonzaga) aplica-se de tal modo na sátira, que a beleza mal o preocupa. Os versos brancos concentram-se no ataque. Sente-se um poeta capaz de escrever no tom familiar que caracteriza o realismo dos neoclássicos, com certa inclinação para a pintura da vida doméstica.
Para Critilo, o arbitrário Governador constituía, de certo modo, atentado ao equilíbrio natural da sociedade.
Entretanto, não se nota nas Cartas nenhuma rebeldia contra os alicerces do sistema colonial, nem mesmo uma revolta contra o colonizador; apenas se critica a má administração do governador Cunha Menezes. Seu significado político, todavia, permanece. Literariamente, é a obra satírica mais importante do século XVIII brasileiro e continua sendo o índice de uma época.
Sendo anônimo o poema e tendo permanecido inédito até 1845, houve dúvida quanto à sua autoria, embora a tradição mais antiga apontasse Gonzaga sem hesitação. Falou-se depois em Cláudio, em Alvarenga Peixoto, em colaboração etc. Estudos empreendidos neste século, culminando pelos de Rodrigues Lapa, vieram dar prati¬camente a certeza da atribuição a Gonzaga.
É tida como uma das mais curiosas sátiras de todos os tempos em Literatura Brasileira (junto com Antônio Chimango). Quem assina essas cartas é um certo Critilo, que escreve a um amigo, Doroteu. O contexto também era diverso, já que o clima de opressão e a tensão política deveriam se asilar no apócrifo.
As Cartas têm em Cunha Menezes (no texto, batizado com o singelo nome de Fanfarrão Minésio) o seu protagonista. Além do viés satírico, a obra constitui um interessante quadro dos costumes daquela época e um registro precioso do que era a corrupção no Brasil já desde os tempos da Colônia. Critilo, por sua vez, escreve do Chile.
Carta 1ª (fragmentos)
Não cuides, Doroteu, que vou contar-te
por verdadeira história uma novela
da classe das patranhas, que nos contam
verbosos navegantes, que já deram
ao globo deste mundo volta inteira.
Uma velha madrasta me persiga,
uma mulher zelosa me atormente
e tenha um bando de gatunos filhos,
que um chavo não me deixem, se este chefe
não fez ainda mais do que eu refiro.
................................................................................
Tem pesado semblante, a cor é baça,
o corpo de estatura um tanto esbelta,
feições compridas e olhadura feia;
tem grossas sobrancelhas, testa curta,
nariz direito e grande, fala pouco
em rouco, baixo som de mau falsete;
sem ser velho, já tem cabelo ruço,
e cobre este defeito e fria calva
à força de polvilho que lhe deita.
Ainda me parece que o estou vendo
no gordo rocinante escarranchado,
as longas calças pelo embigo atadas,
amarelo colete, e sobre tudo
vestida uma vermelha e justa farda.


O Noviço, de Martins Pena
Escrito em 1845 e representada pela primeira vez no Teatro São Pedro (Rio de Janeiro), em 10 de agosto do mesmo ano, talvez seja o texto mais bem construído de todas as comédias de Martins Pena, O Noviço é ainda hoje encenado, como convém a um clássico da nossa literatura dramática.
Tematizando a liberdade de escolha entre os jovens, O Noviço é uma comédia romântica que explora de maneira interessante o maniqueísmo típico desse estilo literário: na dualidade entre enganados e enganadores, entre fracos e fortes, enfim, entre o bem e o mal, há uma união do primeiro pólo - o pólo dos enganados, dos fracos, do bem - que assim se reforça e consegue vencer o segundo: o pólo dos enganadores, dos fortes, do mal...

Estilo
As características românticas de O Noviço são o maniqueísmo, o "happy end", a temática da liberdade e a presença da cor local. Mas existem alguns elementos nesta peça que não se ajustam ao romantismo, como por exemplo, a denúncia social que se dá por meio do humor, da sátira e das caricaturas, e o comportamento pouco convencional, em termos de heroísmo romântico, de seu herói: Carlos utiliza-se de meios moralmente pouco recomendáveis para atingir o que pretende, aproximando-se deste ponto de vista do vilão, Ambrósio. Além disso, a união dos fracos e enganados (Florência e Rosa) contra a força (Ambrósio), transformando em capacidade de luta a submissão e em esperteza a ingenuidade, constitui recurso pouco freqüente nos textos tradicionalmente românticos.

Estrutura da obra

É dividido em três atos, em vez de possuir apenas um, como a maioria dos outros trabalhos, podendo, assim, desenvolver melhor tanto a trama quanto os tipos.
No primeiro ato apresentam-se o hipócrita e interesseiro Ambrósio, que casou com a crédula Florência; o noviço Carlos que com mais vocação para militar fugiu do convento para casar-se com Emília (filha de Florência e sua prima). Aparece também Rosa, primeira esposa de Ambrósio (não havia divórcio na época), que foi abandonada por ele após ter seus bens roubados. Carlos encontra Rosa e esta fornece-lhe meios para chantagear Ambrósio e permitir-lhe sair corretamente do convento, retirar Emília e Juca (irmão mais novo de Emília) da vida religiosa que Ambrósio planejava para eles e casar com Emília. A chantagem ocorre no segundo ato, junto com a revelação a Florência de que o marido é bígamo; Ambrósio foge.
No terceiro ato, após muita confusão, Ambrósio é preso, Carlos liberto de ir ao convento ou ser preso (ele atacara um frade na fuga) e o casal fica livre para casar.
A peça toda lembra as comédias pastelões dos anos 10, com personagens caricatos, situações mirabolantes, perseguições e violência gratuita.

Personagens

As personagens da peça não possuem densidade psicológica, já que são constituídas por meio de estereótipos e de recursos caricaturais que as transformam em "tipos":
Ambrósio - malandro trapalhão, um consumado velhaco que acredita que "os meios justificam os fins".
Florência - mulher de Ambrósio, submissa e ingênua.
Emília - enteada de Ambrósio
Juca - menino de 9 anos, filho de Florência
Carlos - noviço da Ordem de São Bento, sobrinho de Florência
Rosa - provinciana, primeira mulher de Ambrósio
Padre-mestre dos noviços
Jorge
José - criado
1 meirinho, que fala
2 ditos, que não falam
Soldados de Permanentes, etc.

Enredo
O noviço  traz basicamente a história de Carlos, rapaz endiabrado, que é enviado a um convento por decisão de sua tia e tutora. Não tendo vocação para a vida religiosa, Carlos foge do convento e dedica-se a desmascarar o ambicioso Ambrósio, segundo marido de sua tia.  A seguir organiza-se a seqüência de ações que desenvolvem  a essência dessa narrativa.
A peça inicia-se  com Ambrósio Nunes em uma sala ricamente decorada.  Preparando-se para ir à  igreja com sua mulher Florência,  o personagem afirma em tom cínico que mudara  sua  vida de homem pobre em oito anos. Fora miserável, mas valendo-se de determinação, perspicácia e destituído de qualquer escrúpulo tornara-se rico, condição que lhe conferia poder e lhe garantia  plena impunidade.  É interrompido por Florência que lhe apressa, dizendo que é necessário chegar cedo para sentarem-se nos primeiros bancos e, assim, poderem assistir confortavelmente à missa de Ramos. Ambrósio, com delicadeza de fala e gestos, pergunta à esposa como anda o projeto de encaminhar a enteada Emília para o convento e satisfaz-se com a notícia de que tudo corre como ele desejaria. Com muita habilidade, Ambrósio enfatiza  a idéia de que a herança deixada pelo primeiro marido de Florência nunca o atraiu, revela que sua paixão  sempre foi espontânea e pura e, de certo modo, lhe é até um tanto penoso administrar a fortuna do  nobre falecido, no entanto, cabe ao marido zelar pela esposa amada. Desse modo, toma para si a incumbência de cuidar do dinheiro.
Florência cede  às propostas aparentemente sinceras do marido e concorda em encaminhar não somente a filha para o claustro, mas também incentivar seu filho Juca de nove anos para ser frade, acreditando que dessa maneira estaria proporcionando aos dois uma vida virtuosa  e verdadeiramente feliz. Ambrósio, com a intenção deliberada de controlar toda a situação familiar, mostra-se preocupado com a possibilidade de Carlos, sobrinho tutelado de Florência, vir a se revoltar  contra o noviciado que lhe fora  imposto há  seis meses e causar aborrecimentos ao casal. Encerra-se a conversa.
Ambrósio retira-se para acabar de vestir-se. Florência está a agradecer a Deus o marido que tem, quando Emília entra na sala. A mãe aproveita o momento para expor à filha as vantagens que a vida de freira proporciona, Emília chora e, contrariada, declara não ter inclinação para o claustro. A mãe, insensível à dor da filha, abandona a sala  e sobe ao sótão para aprontar-se para a missa.
Inesperadamente, Carlos, vestido de frade, entra afobado e conta à Emília que havia fugido do convento, após discussão que acabara com uma barrigada no Abade Mestre.  Irado, manifesta o desejo de ser militar, de envolver-se em lutas com espadas e não se submeter a jejuns prolongados e a coros e rezas infindáveis. A moça, comovida, ouve o relato dos  martírios sofridos pelo noviço rebelde e lhe conta que também ela deverá entrar para um convento. Carlos revolta-se, declara o seu amor pela prima, acusa severamente Ambrósio de estar conspirando contra todos. Promete que não descansará enquanto não vingar-se  do velhaco Ambrósio. Em meio a conversa, o garoto Juca, desajeitado em um hábito de frade,  corre para o colo de Carlos, que percebe claramente o plano do marido da tia: filhos e enteados dedicados à vida religiosa seriam obrigados a fazer votos de pobreza, o que garantiria a posse de todos os bens por parte de Ambrósio. Emília e Juquinha saem da sala.
Batem à porta. Rosa entra na sala e com  muita reverência dirige-se a Carlos, imaginando ser ele um frade. Conta-lhe que está à procura de seu  marido Ambrósio Nunes, que há seis anos a abandonara em Maranguape, de posse de sua fortuna, a pretexto de investimentos lucrativos em Montevidéu. Sem notícias, ela chegou a pensar que ele tivesse morrido, mas uma pessoa informara-lhe de que estava o fujão na corte, e estava ela ali, no momento, após longa  viagem e andanças pelo Rio de Janeiro. Carlos, aproveita-se do engano da mulher e, fingindo ser bom capuchinho, investiga detalhes da história e recebe, como prova da veracidade dos fatos relatados, uma cópia da certidão de casamento de Rosa e Ambrósio. Promete ajudá-la e pede-lhe que aguarde alguns momentos em um quarto da casa. Florência, o marido e a filha, prontos para saírem, deparam-se com Carlos. Ambrósio cobra de Carlos obediência. O moço ironicamente desafia o marido da tia por meio de frases ambíguas, dando a entender que conhecia a história pregressa de Ambrósio. Este se enfurece e passa a fazer-lhe exigências. Carlos o toma  pelo braço, abre a porta do quarto e mostra-lhe Rosa. O tio desorganiza-se, corre e arrasta violentamente para fora da casa mulher e enteada.
Carlos diverte-se com a aflição do cínico tio e expõe à Rosa a atual condição de Ambrósio. A mulher traída não resiste. Desmaia. Cria-se um alvoroço. Juquinha é chamado a ajudar; apanha um galheteiro, Carlos a faz cheirar vinagre, azeite, tentado-lhe restituir os sentidos. Em meio a intensa agitação, ouvem-se meirinhos  aproximarem-se. Dirigem-se eles a casa para efetuarem a prisão do travesso noviço.
Carlos faz a mulher acreditar que Ambrósio é poderoso e que os oficiais batiam à porta  para prendê-la. Propõe a ela que trocassem vestimentas. Rosa vestiria  seu hábito de religioso, e ele, suas vestes de mulher. Desse modo, estaria ela a salvo da fúria dos meirinhos e ele seria preso em seu lugar. Rosa ingenuamente aceita a proposta. Juca a encaminha  para um quarto. Carlos, travestido de mulher, recebe dissimuladamente o Mestre de Noviços e os meirinhos. Faz-se passar por tia do noviço endiabrado, aponta o esconderijo e orienta a maneira segura de surpreender e prender o sobrinho. Os oficiais entram no quarto, capturam o falso noviço e o levam para o convento.
Carlos  diverte-se imaginando a confusão que aconteceria  quando o Abade percebesse que uma mulher fora presa em seu lugar. Pede a Juca que  ficasse à janela e o avisasse da chegada  do padrasto.
Ambrósio, perturbado, invade a sala. Havia deixado Florência e Emília na igreja.  A sua agitação é tamanha que se dirige a Carlos, pensando ser ele Rosa. O sobrinho aproveita-se do engano e diverte-se, respondendo às perguntas de Ambrósio como sendo sua primeira esposa. Chega inclusive a atirar-se aos pés de Ambrósio em pranto exagerado.
Nesse instante, o tratante Ambrósio percebe o equívoco. Irrita-se com o descaramento do sobrinho, que imediatamente lhe contém a fúria, mostrando a certidão que estava em seu poder. O tom da cena inverte-se: Ambrósio humilha-se, implora a Carlos que nada revele à Florência. Dono da situação, o rapaz faz exigências:  abandonará o noviciado, receberá a herança deixada pelo pai; Emília não será freira, e  ele terá o consentimento para casar-se com a prima.  Ambrósio, de joelhos, aceita as imposições e suplica piedade de Carlos.
Subitamente,  Florência e Emília entram na sala  e há novo equívoco: Florência acredita ter flagrado o marido em traição.  Sente-se desgraçada e num assombro se dá conta de que é o sobrinho que subjuga Ambrósio. Pede explicações para aquela patifaria  e, cinicamente, Carlos afirma que estavam encenando uma comédia para o sábado de Aleluia. A tia, atônita, ouve ainda o rapaz trapalhão declarar o acordo que fizera com Ambrósio. Este vai interrompendo a fala de Carlos com argumentos incontestáveis. Diz à mulher que fora um erro encaminhá-lo ao convento, pois não se pode impedir que os jovens possam realizar o amor tão genuíno que sentem. Carlos acrescenta que como prova de agradecimento cederá metade de seus bens em favor do tio bondoso e lhe entrega a certidão de casamento como se entregasse o termo de cessão de parte da fortuna. Ambrósio rasga o papel, dissimulando total desinteresse pela doação. Florência sente-se abençoada por ter casado com um homem tão honrado e chega a vangloriar-se da própria capacidade de distinguir o amante sincero entre tantos pretendentes que tivera logo após a viuvez. Elogia as qualidades do marido, que insiste não ser merecedor de tanta reverência.
Felizes, Emília e Carlos acertam o casamento para dali a quinze dias. Nem bem confirmam o enlace matrimonial, o Mestre dos Noviços surge para efetuar a prisão do noviço fujão.  O religioso  declara enraivecido o constrangimento que passara diante do Abade ao cair novamente em uma cilada de Carlos, quando levou ao convento uma mulher. Diante das declarações do Mestre,  Ambrósio perturba-se e tenta saber do paradeiro da tal mulher. Florência desconfia das intenções do marido. A confusão está armada: o Mestre arrasta o noviço para fora da casa; a tia não consegue impedir a prisão do sobrinho, mesmo dizendo que Carlos abandonaria a vida religiosa e que ela mesma diria isso ao Abade.
O clima na casa é de confusão. Ambrósio mostra-se atordoado, Florência pede explicações para ter sido levada apressadamente para a igreja e ter sido lá deixada. Ambrósio rapidamente dissimula a própria aflição. Tenta abraçar a esposa que se revela arredia, exigindo que se esclareça a identidade da mulher que fora presa em lugar do sobrinho. Acuado,  Ambrósio inventa ser a tal mulher uma antiga namorada, que não se conformara com o fato de ter ele se casado. Confessa o erro  cometido ao envolver-se na juventude com aquela moça. Diz-lhe, no entanto, que a causa da separação fora o amor incontido que sentiu desde o primeiro momento que viu Florência. O discurso amoroso de Ambrósio é interrompido por Rosa, vestida de frade. Esta, entregando a certidão a Ambrósio, interpõe-se ao casal, gritando que aquele homem lhe pertencia. Ambrósio corre pela casa, tentando escapar. Nesse momento, ouve-se a ordem de prisão ao bígamo. Enquanto isso se passa, Florência, estarrecida, lê  a certidão de casamento de Rosa Lemos e Ambrósio Nunes.
Muda-se o cenário. Florência, recolhida no quarto de Carlos, para evitar contato com o ambiente em que vivera momentos felizes ao lado do marido farsante, chora convulsivamente e é confortada pela filha. Está assim prostrada há oito dias. Nada a anima, nem mesmo os remédios receitados por um médico da família. Emília afirma ser necessário que a mãe reaja e, desse modo, vingue-se de tanta traição. Florência diz que seu procurador está encaminhando um mandado de prisão e que quer enviar uma carta ao Abade, explicando-lhe os fatos e pedindo-lhe o favor de mandar um representante do convento para que ela se justificasse pessoalmente pelos transtornos causados. Decide, então, que o criado José fosse o portador da carta.
Nova surpresa:  Carlos mais uma vez havia fugido do claustro. Apressado, invade os fundos da casa, com o hábito roto e sujo, as mãos esfoladas, joelhos machucados. Entra em seu antigo quarto. Ouve a voz do padre-mestre, esconde-se embaixo da cama em que está deitada a tia.  Emília acompanha o padre até os aposentos onde está Florência, que acorda meio atordoada. Estava ele incumbido novamente de efetuar a prisão do noviço indomável. Florência e Emília surpreendem-se com a notícia de que Carlos tivesse escapado novamente das grades do convento.  Enquanto Florência expõe a sua decisão de livrar Carlos do noviciado, Emília percebe a presença do amado embaixo da cama. O padre-mestre retira-se da casa, aliviado por não ter mais que se haver com as diabruras de Carlos.
Florência lamenta-se da tragédia que lhe acometera.  Emília se mostra comovida e comporta-se como se não soubesse o paradeiro do primo, mesmo este lhe puxando as saias e fazendo-lhes cócegas nas pernas. Chega a casa Ambrósio, trajando-se como um frade, seguindo o criado José até o quarto de Florência. Há novo equívoco.  Florência imagina ser o frade o representante que requisitara ao Abade e passa a lhe contar a trama de que fora vítima.  Ambrósio, não suportando ouvir tantas acusações, denuncia-se, retirando o capuz, revelando, assim, a sua real identidade. Revela à mulher que as portas da casa estão trancadas e que ninguém poderá lhe socorrer os gritos. Impõe que lhe entregue dinheiro e jóias, enfim, tudo que ela possuísse; caso contrário, só restaria a alternativa de matá-la.  Nesse momento, se esclarece mais um mal-entendido: José, fiel a Ambrósio, não tinha enviado a carta ao Abade, na verdade, tinha facilitado os planos de seu patrão.
Florência corre aos gritos pela casa, esconde-se em um canto coberta por uma colcha. Ambrósio, na correria, encontra Carlos, puxa-lhe pelo hábito, pensando tratar-se das saias de Florência. Carlos revida com uma bofetada. A tia permanece imóvel , coberta por uma colcha. Em seguida, entram quatro homens armados e o vizinho Jorge que vinha em socorro aos gritos que da rua se ouviam.  Florência diz que um ladrão travestido de frade tinha invadido a casa, mas já havia fugido. Os homens vasculham a casa e acabam dando com Carlos, que aos berros, sai debaixo da cama, e, tentando  proteger-se das agressões, mete-se atrás de um armário e o atira ao chão. O vizinho, ferido na perna, grita à Florência que o ladrão se escondia no quarto e havia escapulido por uma porta. Emília desvencilha-se do vizinho, agradece a ajuda e mando-o embora.  Insiste com a mãe que o frade era Carlos. A mãe retruca, afirmando que era o padrasto.
A tensão aumenta com a chegada de Rosa, que é recebida com certa amabilidade por Florência. As duas conversam a sós. Lamentam-se da inocência com que se entregaram ao vilão Ambrósio. Rosa apresenta à Florência a ordem de prisão contra o bígamo e queixa-se ao saber que Ambrósio há instantes escapara daquela casa.  De modo inesperado, arrebenta-se uma tábua do armário e Ambrósio, quase asfixiado, põe a cabeça de fora. Ambas mulheres atacam-no aos socos e pauladas. O farsante, aos gritos, suplica compaixão às duas esposas.
Entra no quarto Carlos, preso por Jorge e os soldados. Florência  desfaz o engano, dizendo que era seu sobrinho o que tomavam por ladrão.  Ambrósio esconde-se novamente no armário. Rosa, acompanhada de oficiais de justiça, entrega o mandado lavrado de prisão. O bígamo é retirado do armário e recebe a sentença de prisão. O Mestre de Noviços retorna a casa com a permissão de livrar Carlos do convento.  Antes de retirar-se, o religioso abençoa a futura união de Emília e Carlos. Ambrósio sai lamentando-se da punição recebida.

Marcos Rey
Marcos Rey, pseudônimo de Edmundo Donato, nasceu e morreu em São Paulo (1925- 1999), cidade que sempre foi cenário de suas crônicas, contos, novelas e romances. Sua carreira, repleta da glória, foi marcada por um drama pessoal dos mais violentos, que permaneceu oculto até a sua morte. Marcos Rey era portador de hanseníase, doença conhecida até meados do século XX como lepra e que desde os tempos bíblicos carrega o estigma de maldição. A partir dos anos 30, a hanseníase passou a ser combatida com ferocidade pelas autoridades sanitárias paulistas, que internavam os doentes à força em sinistros leprosários. Depois de uma segunda denúncia anônima, em 1941, o jovem Edmundo, que contraíra a doença aos dez ou doze anos, foi levado por uma ambulância enquanto jogava bilhar, em um bar na Praça Marechal Deodoro, no Centro de São Paulo. Começava um pesadelo que duraria seis longos anos, até a sua última fuga do sanatório, em 1945.

Conhecendo um pouco as obras

Autor de tramas ágeis, as narrativas de Marcos Rey são fundamentais para atiçar o prazer de ler literatura de qualidade e preparar os jovens leitores para vôos mais ousados pelos livros clássicos.
Coração Roubado – Um livro de crônicas.
Você sabe o que é uma crônica? O autor, no prefácio, ajuda você a entender um pouco melhor esse gênero literário tão gostoso de ler e cultivado no Brasil por excelentes escritores como Machado de Assis (1839 -1908), Cecília Meireles (1901-1964), Rubem Braga (1913 -1990), Fernando Sabino (1923 -2004), Ignácio de Loyola Brandão (1936), Moacyr Scliar (1937) e tantos outros ...
Vamos ler um trechinho do prefácio O que é mesmo uma crônica?
Muitos supõem, também erradamente, que a crônica, ramo econômico das letras, sem espaço para alinhavar e aprofundar conclusões, nem tamanho para conferir finais apoteóticos, não passa de malabarismo de entreato, cortina ou número para entretenimento ligeiro, show de bolso, sem grandiosidade. Um quase - literatura de consumo dietético. Mas a crônica é mais, muito mais que isso, mesmo as que não têm fim nem começo.
Escritas de maneira inteligente e instigante, as 26 crônicas de Marcos Rey apresentam uma série de tipos inesquecíveis, vivendo situações as mais diversas. Nas páginas de Coração roubado, você encontrará cenas hilariantes, absurdas, constrangedoras, delicadas... presentes no dia - a- dia de qualquer pessoa, em qualquer lugar.
Marcos Rey agrupou as crônicas em três subtítulos:
1. Situações embaraçosas
2. Flashes da vida moderna
3. Figurinhas carimbadas

Padre Antônio Vieira
"Nem português, nem brasileiro; Vieira era inteiramente jesuíta," já disse um autor. O pe. Antônio Vieira nasceu a 6 de fevereiro de 1608, em uma casa pobre na Rua do Cônego, em Lisboa, tendo sido um dos mais influentes homens de seu século em termos de política portuguesa. Seu pai servira a marinha e fora, por dois anos, escrivão da Inquisição portuguesa.
Seu pai se mudou em 1609 para o Brasil, onde assumiu um cargo de escrivão em Salvador; em 1614 trouxe a família para o Brasil quando Antônio tinha 6 anos de idade. Antônio estudou na única escola de Salvador da época: a dos jesuítas. Consta que não era um bom aluno no começo, mas depois tornou-se brilhante. Juntou-se a Companhia de Jesus como noviço em maio de 1623. Existem muitas lendas sobre Vieira, incluindo que na juventude sua genialidade lhe fora concedida por Nossa Senhora e que uma vez um anjo lhe indicou o caminho de volta à escola quando estava perdido. Quando em 1624 os holandeses invadiram a Bahia, Vieira se refugiou no interior, onde começaram seus impulsos missionários.
Um ano depois tomou os votos de castidade, pobreza e obediência, abandonando o noviciado. Não partiu para a vida missionária, no entanto. Estudou muito além da teologia: lógica, física, metafísica, matemática e economia. Em 1634, após ter sido professor de retórica em Olinda, se ordenou. Em 1638 já ensinava Teologia. Apesar de antes pensar-se que Vieira defendia a posse do Nordeste por Portugal, hoje sabe-se que ele preferia que Portugal o entregasse a Holanda apesar de seu famoso sermão em favor da posse (Portugal gastava 10x mais com o NE do que ganhava e a Holanda era um inimigo militar muito superior na época). Em 1641 começou a carreira com diplomacia na conturbada Portugal do século XVII.
Quando eclodiu uma disputa entre dominicanos (membros da inquisição) e jesuítas (catequistas), Vieira, defensor dos judeus, cai em desgraça, enfraquecido pela derrota de sua posição quanto à questão NE. Em 1644 ele deixa Portugal como embaixador (seu pai, que antes vivia pobre, é nomeado pensionista real) para negociar com a Holanda a devolução do Nordeste, com grau de sucesso complexo numa ocasião da história de Portugal que quase acaba com Portugal como parte da Holanda.
O povo de Portugal não gostava das pregações de Vieira em favor dos judeus e após estes tempos conturbados da política portuguesa ele acaba voltando ao Brasil, onze anos após voltar para a Europa. Fica no NE algum tempo e volta para a Europa com a morte de D. João IV, tornando-se confessor da regente D. Luísa. Quando chega a questão do sucessor de D. João, Vieira fica no lado perdedor e é desterrado para o Porto, enquanto os jesuítas têm seus privilégios removidos. A Inquisição chega a prendê-lo na época após não ter sucesso em censurá-lo.
Novamente no lado mais fraco na época da deposição de D. Afonso IV, vai ao Vaticano após meses sem pregar. Encontra o papa à beira da morte e fica em Roma. Quando em 1671 nova expulsão dos judeus é feita, Vieira parte na defesa deles. Em 1675 ele é absolvido totalmente pela Inquisição. No começo de 1681 volta ao Brasil e volta a pregar. Suas obras começam a ser publicadas na Europa, onde são elogiadas até pela Inquisição. Já muito velho e doente, tem que espalhar circulares sobre sua saúde para manter em dia sua longa correspondência. Em 1694 já não escreve do próprio punho. Em 10 de junho começa a agonia quando perde a voz e acabam-se seus discursos. Em 17 de junho morre.
Vieira tem uma obra complexa que exprime suas opiniões políticas, sendo não propriamente um escritor mas um orador. Além de seus Sermões existe o Clavis Prophetarum, seu livro de profecias que nunca acabou. Entre os sermões existem dois que são os mais célebres: o Sermão da Quinta Dominga da Quaresma e o Sermão da Sexagésima. Vieira também tem uma classificação complexa quanto a nacionalidade: passou mais da metade de sua vida no Brasil, o próprio povo, quando ele caía em desgraça, chamava-o de "Judas do Brasil"; mas foi uma importante figura para Portugal na política interna e externa, para não falar na cultura.

 

Quincas Borba, de Machado de Assis
Narrado em terceira pessoa, é considerado o mais objetivo dos romances de Machado de Assis Publicado em 1891, ou seja, 10 anos depois da mudança radical trazida por Memórias Póstumas de Brás Cubas, o romance Quincas Borba pode ser visto como irmão da obra que inaugurou o Realismo Brasileiro. Não tem as inovações deste, mas ainda se percebe, ainda que de forma menos intensa, o mesmo dom ao trabalhar com a digressão, ironia e metalinguagem. É um desdobramento da problemática e da narrativa de Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Outro ponto de contato é o fato de Quincas Borba ser personagem que já fazia parte de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Amigo de infância do autor defunto, tinha decaído de abastado para mendigo, depois, recebendo uma herança, tornara-se rico e criador de uma filosofia, o Humanitas ou Humanitismo.
Essa teoria é justamente o principal mote comum entre as duas obras. Há quem diga que se trata de uma paródia de Machado de Assis às inúmeras filosofias que surgiram no final do século XIX, em que todos pareciam ter uma explicação sobre tudo.  No entanto, existe também a possibilidade de se ver aqui uma metaforização do próprio ideário a que o grande autor realista se apegava (interessante é notar que o fato de duas interpretações que enxergam tons opostos no Humanitas é um aspecto muito esperado na literatura machadiana, acostumada a conciliar elementos contraditórios, dilemáticos de nossa existência. Faz lembrar o último capítulo de Quincas Borba, em que se mencionam que para as estrelas, bem acima do gênero humano, lágrimas e risos acabam tendo o mesmo valor na indiferença dos tempos).

Tempo e espaço
A história inicia-se em 1867, em Barbacena, MG, estendendo-se para o Rio de Janeiro, a partir de 1870. O desfecho dramático de Rubião é, também, em Barbacena, alguns anos depois.

Foco narrativo
O principal elemento da estrutura da narrativa de Machado de Assis é o narrador. Em Quintas Borba, também é um personagem dúplice, narrando em primeira ou terceira pessoa, ele está fora da narrativa, mas às vezes, assume o “eu narrado. Ex.: “Este Quincas Borba, se acaso me fizeste o favor de ler as...”.
É onisciente, e interfere na história, fazendo comentários e dirigindo-se ao leitor. Sua participação é, portanto, interventiva.
Machado de Assis foi um antecipador da chamada estética de receptação ao incluir em suas narrativas, o diálogo entre o narrador e o leitor. Este é, também, personagem, um leitor virtual, explicitado ou não na narrativa.
Enfim, são diferentes as formas como Machado de Assis estabelece o diálogo entre narrador - o personagem que conta a história - e o leitor - personagem para quem se narram os fatos - antecipando, em quase cem anos, a importância desses elementos na narrativa contemporânea e a participação do leitor implícito, intratextual, para a elaboração do sentido do texto.

Enredo
A narrativa se passa em Barbacena. É a história de um professor mineiro de primeiras letras, Rubião, para quem o filósofo Quincas Borba (personagem que já aparecera em Memórias Póstumas de Brás Cubas) deixa todos os seus bens, com a condição de que o herdeiro cuide de seu cachorro, também chamado Quincas Borba. Quincas Borba é bajulado por Rubião, que quase se havia tornado cunhado. O interesse é a riqueza do filósofo, solteiro, sem parentes. Seus esforços mostram-se, no fim, frutíferos. Já louco, Quincas morre enquanto estava no Rio de Janeiro (esse momento de Quincas Borba é narrado em Memórias Póstumas de Brás Cubas).
Deve-se lembrar que o cachorro é um elemento curioso na obra. Pode-se dizer que o título refere-se a ele, num mecanismo que engana o leitor – o livro não é, na verdade, sobre o homem Quincas Borba. Pode-se, também, ver no animal uma extensão, dentro dos próprios ditames do Humanitas, do princípio do antigo dono. Tanto que algumas vezes o Rubião tinha preocupações com suas ações imaginando que o mestre havia sobrevivido na criatura. É uma observação que faz sentido, tanto no aspecto “espiritualista” como na própria estrutura literária da obra, pois o cão fica como uma suposta consciência do filósofo, a incomodar Rubião.
De posse da fortuna e tendo aprendido de Quincas Borba alguns elementos de sua filosofia, o Humanitismo, Rubião cai na mesma sanha da espécie humana: quer fama, status. Para tanto, Barbacena não o satisfaz e ele se muda para o Rio de Janeiro. Durante a viagem de trem, conhece o casal Sofia-Cristiano Palha. Encanta-se com a beleza da mulher. E, ao ingenuamente confessar sua riqueza repentina, desperta o olhar de rapina do marido, que rapidamente oferece sua casa e sua ajuda durante a estada do mineiro na capital. Desabituado com a vida na cidade grande, cercado de pessoas que vivem de seu dinheiro, Rubião apaixona-se por Sofia, mulher de Cristiano Palha, agora seu sócio.
Ao saber da corte de Rubião à sua mulher, Palha divide-se entre dois sentimentos: o ciúme que tem da mulher fá-lo pensar em atitudes radicais, mas sua dependência econômica de Rubião o leva a não querer ofender o sócio. Os cônjuges sofrem de um mal típico na ficção machadiana: lutam por prestígio social, por cavar um espaço no seu meio. Isso justifica o fato de Rubião gostar de exibir sua esposa, apreciando os decotes atraentes que ela usa nos salões. Sua vaidade é satisfeita ao saber que sua mulher é cobiçada. O mesmo se pode afirmar dela, principalmente pelo esmero que tem com vestuário. Preocupam-se em serem bem vistos pela sociedade. O que não implica que tenham de fato valores – o que importa é a imagem, é o conceito e não o fato. É um tema a ser discutido mais para a frente.
Aproveitando-se dos encantos de sua própria esposa, Cristiano Palha consegue atrair a atenção de Rubião, começando por adquirir dele um empréstimo. Mas planeja ir mais adiante: quer, por meio de uma sociedade, dinheiro para investir em seus negócios e acabar enriquecendo. Está tão preocupado que quando sua esposa confessa que foi cortejada pelo abastado (foi em uma festa, no jardim da casa dos Palha, quando Rubião praticamente tenta, digamos, atacar Sofia) foi bruscamente interrompido pelo Major Siqueira, personagem pândega (não falava – produzia uma enxurrada de palavras), que flagrou a inconveniente cena. Mais uma vez, as aparências suplantaram o fato. Achou que estava havendo adultério, quando de fato não havia), faz todo o possível para relativizar qualquer arrufo de dignidade de Sofia. Não pode perder uma escada social tão preciosa. Nota-se, aqui, a que ponto chega o desejo por status.
Sofia, astuciosamente, consegue manter intactos, tanto o interesse de Rubião, quanto a fidelidade conjugal. Aconselhada a não ser brusca com uma pessoa tão preciosa, Sofia acaba assumindo uma postura ambígua para Rubião. Não atende a seus desejos, mas também não os nega enfaticamente, o que alimenta nele esperanças, geradoras de certas complicações.
Tonica, filha do Major Siqueira e que atingiu o posto perigoso de solteirona, vê no mineiro sua última tábua de salvação. Mas percebe no homem o interesse por Sofia, o que lhe desperta desejos éticos de denúncia que, no fundo, são mera sede de vingança e despeito. Mas não reage, apesar de toda a expectativa criada. No fim, sofre um processo de empobrecimento, ao mesmo tempo em que ela e seu pai são desprezados pelo casal Palha, em franca ascensão social. Acaba arranjando um noivo – um tanto desqualificado, mas, como dizia uma outra personagem, D. Fernanda, “um mau marido é melhor do que um sonho” – que termina por morrer dias antes do casamento (parece que o Major Siqueira e Tonica servem para mostrar na narrativa o lado dos perdedores, o que se contrapõe com o Humanitismo defendido por Quincas Borba, de acordo com o qual a opinião, o ponto de vista dos perdedores não conta).
Em outro baile, um jovem de nome Carlos Maria passa a noite dançando com Sofia, o que deixa até no ar a possibilidade do surgimento de um adultério. Mas houve apenas a satisfação de dois egos: ela, por se sentir idolatrada; ele, por ter em suas mãos a mais bela mulher do salão. E tudo esfria, não surgindo mais nenhum laço forte além da dança. No entanto, duas personagens imaginaram que o episódio tinha gerado conseqüências mais terríveis. O primeiro foi Rubião, que se sente enciumado. Em sua mente, aceita dividir Sofia com Cristiano, marido. Mas não aceita com outro amante. A outra personagem é Maria Benedita, prima de Sofia, criada no interior, alheia à civilização, mas que desperta o desejo de evoluir graças ao interesse que sente por Carlos Maria. Sente-se, pois, arrasada ao pensar que a senhora Palha indignamente havia-lhe passado a perna.
Mas, se a menina mergulha na melancolia passiva, Rubião é um pouco mais ativo.
Começa a ter delírios paranóicos. Imagina, com base numa história contada (e provavelmente inventada) por um cocheiro, que Sofia se encontrava com Carlos Maria num bairro distante. E o clímax é quando imagina ter como prova uma carta dela para o suposto amante, missiva que nem sequer abrira. Se tivesse, descobriria que era apenas um comunicado sobre a Comissão de Alagoas.
Tocou-se, pois, num passo importante da narrativa: a Comissão de Alagoas. Em primeiro lugar, esse episódio vai lembrar a morte da avó de Quincas Borba. Por causa do flagelo que houve na província nordestina, Sofia faz parte de um grupo de caridade composto de senhoras da alta sociedade da corte. Começa, pois, a fincar seu lugar ao sol, graças à desgraça alheia. É também por meio desse grupo que sai conseguir o casamento de Maria Benedita com Carlos Maria, parente de D. Fernanda, mulher muito conceituada. Torna-se nítido, nesse ponto, uma característica muito comum às narrativas machadianas: os mecanismos de favor. No Brasil da época de Machado de Assis, muitas vezes a ascensão social não era obtida por meio da competência.
Entravam em campo tais mecanismos. Quem estava por baixo, geralmente gente da classe média, como profissionais liberais ou comerciantes (o caso do casal Palha), esforça-se para conquistar a simpatia de quem está por cima, ricos proprietários da classe alta (o caso de D. Fernanda).
Eis, pois, o que enxergamos na relação entre a poderosa D. Fernanda e Maria Benedita, que culminou no casamento desta, alavancando-a para a alta esfera social. Vemos isso também na entrada de Sofia na Comissão de Alagoas. É por meio desse grupo que angaria a simpatia das damas abastadas, principalmente de D. Fernanda, mais uma vez (essa personagem, impositiva, adora exercer seu poder de influência sobre as pessoas), tornando-se uma delas.
O dinheiro adquirido graças à sociedade com Rubião é investido, originando progresso financeiro. O enriquecimento fica notório na seqüência de mudança de residências: de Santa Teresa vão para a praia do Flamengo e de lá finalmente instalam-se no Palacete do Botafogo.
Rubião é destinado à exploração, à derrota. É o gastador. É o sugado. Sua riqueza esvai-se em empréstimos a fundo perdido, em investimentos no jornal do político Camacho, no grupo de comensais que freqüentam sua casa, aproveitando-se de jantares, charutos e demais benesses.
O mais incrível é que no momento em que a derrocada do protagonista se mostra mais nítida é que ele assume delírios de grandeza, provavelmente provocados pela situação incoerente entre não ter o seu amor por Sofia correspondido e não ser claramente dispensado por ela (o que pode explicar essa incoerência é a vaidade de Sofia. Sente-se lisonjeada ao saber que alguém a venera, por isso não corta os laços, desde que não se comprometa sua reputação (mais uma vez a vaidade). É o que aconteceu com Carlos Maria. Enquanto ele a cortejava, ela sentia-se bem. Abandonada, pois este se casa com Maria Benedita, sente despeito. Não ia praticar o adultério, mas se incomoda em muito com a idéia de ser passada para trás). Chega até a desenvolver um ciúme doentio, imaginando em suas mãos não uma prova do adultério de sua amada com Carlos Maria: a carta fechada que esta havia mandado ao jovem e que fora desleixadamente perdida por um empregado em frente à casa de Rubião.
O interessante é que, num momento de mistura entre ciúme e decência (mais uma vez, a mistura de elementos dilemáticos orientando as ações humanas), entrega a missiva à Sofia, com a intenção de passar-lhe uma lição de moral. A mulher chega até a ficar corada, mas imediatamente recompõe o domínio da situação, mostrando-se tranqüila. Atitude típica das heroínas machadianas.
Para Rubião, tudo era prova substanciosa do adultério. Mas consistia só em aparência. A carta nada mais era do que um convite a Carlos Maria para contribuir na famosa Comissão de Alagoas. Note como uma ampla realidade foi montada em cima apenas da aparência. Vivemos desgraçadamente num mundo em que a aparência tem mais importância que a essência.
Mas o fato é que Sofia, tempos depois, desfaz para Rubião o mal entendido. Na cabeça dele, tal esforço indicaria que ela tem interesse em não perder o respeito e quem sabe algo mais diante dele. Para ela, não quer perder a reputação e, quem sabe, a admiração dele lavando-lhe o ego.
Confirmando a discrepância entre aparência e essência, Rubião vai à falência enquanto imagina ser Napoleão. Chega a receber a ajuda caritativa de D. Fernanda e do casal Palha (estes, mais preocupados com a imagem social, pois já nem havia mais sociedade, desfeita providencialmente às vésperas da derrocada). Arruinado, Rubião deixa de ser útil e é abandonado pela roda de parasitas que o cercava. Palha e Sofia afastam-se cada vez mais e ele acaba sendo internado num asilo de onde foge para voltar a Minas. Morre lá, em pleno delírio de grandeza, acompanhado de seu cão Quincas Borba e repetindo uma frase do Humanitismo: - "Ao vencedor, as batatas".
No fim, o protagonista foge do hospício em que fora internado. Volta para Barbacena, em companhia de seu inseparável cão (pode ser vista aqui uma representação do princípio da eternidade do Humanitismo, que sobrevive a tudo. Quincas filósofo teria sido transferido para o Quincas cão, acompanhando Rubião. Mas também deve-se notar que este era o único ser que esteve ao lado do protagonista, tanto na riqueza, quanto na pobreza). Expõe-se à chuva da madrugada, o que o conduz à pneumonia, que lhe é fatal. Três dias depois o seu cão morre.
Tudo cai no esquecimento, na indiferença do tempo. Humanitas mais uma vez garantia sua sobrevivência, dando vida ao forte, eliminando os mais fracos.

Casa de Pensão, de Aluísio de Azevedo
A obra foi baseada num fato real: a Questão Capistrano, crime que sensibilizou o Rio de Janeiro em 1876/77, envolvendo dois estudantes, em situação muito próxima à da narração de Aluísio Azevedo. Neste livro, o autor estuda as influências da sociedade sobre o indivíduo sem qualquer idealização romântica, retratando rigorosamente a realidade social trazendo para a literatura um Brasil até então ignorada.
Autor fiel à tendência naturalista difundida pelo realismo, Aluísio Azevedo focaliza, nesta obra, problemas como preconceitos de classe, de raças, a miséria e as injustiças sociais. Descreve a vida nas pensões chamadas familiares, onde se hospedavam jovens que vinham do interior para estudar na capital. Diferente do romantismo, o naturalismo enfatiza o lado patológico do ser humano, as perversões dos desejos e o comporta-mento das pessoas influenciado pelo meio em que vivem.
Casa de Pensão é uma espécie de narrativa intermediária entre o romance de personagem (O Mulato) e o romance de espaço (O Cortiço). Como em O Mulato, todas as ações ainda estão vinculadas à trajetória do herói, nesse caso, Amâncio de Vasconcelos. Mas, como em O Cortiço, a conquista, ordenação e manutenção de um espaço é que impulsiona, motiva e ordena a ação. Espaço e personagem lutam, lado a lado, para evitar a degradação.
As teses naturalistas, especialmente o Determinismo, alicerçam a construção das personagens e das tramas.
Romance naturalista de 1884, em que o autor, de carreira diplomática bastante acidentada, move personagens que se coadunam perfeitamente com a análise dos críticos de que seus tipos são, via de regra, grosseiros, não se distinguem pela sutileza da compreensão, nem pela frescura dos sentimentos. São eixos de relações da estrutura da presente narrativa a Província - Maranhão, a Corte - Rio de Janeiro, a casa paterna e a casa de pensão.

Estilo
O naturalismo está plenamente representado em Casa de Pensão desde a abertura do romance, quando Amâncio aparece marcado fatalisticamente pela escola e pela família: uma e outra o encheram de revolta. Por causa de um castigo justo ou injusto, "todo o sentimento de justiça e da honra que Amâncio possuía, transformou-se em ódio sistemático pelos seus semelhantes...". O leite que o menino mamou na ama negra também está contagiado e irá marcá-lo. O médico dizia: "Esta mulher tem reuma no sangue e o menino pode vir a sofrer para o futuro."  Amâncio é uma cobaia, um campo de experimentação nas mãos do romancista. Nele o fisiológico é muito mais forte do que o psicológico. É o determinismo que vai acompanhar toda a carreira do personagem.
Está presente também na obra o sentido documental e experimental do romance naturalista, renunciando ao sentimentalismo e à evasão, procura construir tudo sobre a realidade. Como já mencionado, a estória do romance se baseia num caso real.

Linguagem
Uma técnica comum ao escritor naturalista é o abuso dos pormenores descritivo-narrativos de tal modo que a estória caminha devagar, lerda e até monótona. É a necessidade de ajuntar detalhes para se dar ao leitor uma impressão segura de que tudo é pura realidade. Essas minúcias se estendem a episódios, a personagens e a ambientes. Num episódio, por exemplo, há minúcias de tempo, local e personagens. E móveis de uma sala até os objetos mais miúdos.
Não se pode dizer que a linguagem do romance é regionalista; pelo contrário, o padrão da língua usada é geral e o torneio frasal, a estrutura morfo-sintática é completamente fiel aos padrões da velha gramática portuguesa.
Como Machado de Assis, Aluísio Azevedo também usa alguns recursos desconhecidos da língua portuguesa do Brasil, principalmente na língua oral. Assim, por exemplo, o caso da apossínclise (é uma posição especial do pronome oblíquo que não escutamos no Brasil, mas é comum até na língua popular de Portugal). São exemplos de apossínclise: "Há anos que me não encontro com o amigo." (Há anos que não me...) "Se me não engano, você está certo." Em Casa de Pensão essa posição pronominal é um hábito comum.

Foco narrativo
O autor escolheu o seu ponto-de-vista narrativo: a terceira pessoa do singular, um narrador onisciente e onipotente, fora do elenco dos personagens. Como um observador atento e minucioso dentro das próprias fórmulas apertadas do naturalismo. No caso deste romance, Aluísio Azevedo trabalhou muito servilmente sobre os fatos absolutamente reais.

Temática

Como em O Cortiço, Aluísio de Azevedo se torna excepcionalmente rico na criação de personagens coletivos: a casa de pensão, tão comum ainda hoje, no Brasil inteiro, tem vida, uma vida estudante, nas páginas do romance. Aluísio conhecia, de experiência própria, esse ambiente feito de tantos quartos e tantos inquilinos, tão numerosos e tão diferentes, nivelados pela mediocridade e em fácil decadência moral. O autor faz alguns retratos com evidentes traços caricaturais (a sua velha mania ou vocação para a caricatura...), mas fiéis e verdadeiros. Tudo se movimenta diante do leitor: a casa de pensão é um mundo diferente, gente e coisas tomam aspectos novos, as pessoas adquirem outros hábitos, informadas ou deformadas por essa vida comunitária tão promíscua. Aí se encontram e se desencontram, se amontoam e se separam tantos indivíduos transformados em tipos, conhecidos, às vezes, apenas pelo número do quarto. Em O Cortiço o meio social é mais baixo; na Casa de Pensão é médio.
Às doenças morais (promiscuidades, hipocrisia, desonestidades, sensualismos excitados e excitantes, ódios, baixos interesses, dinheiro...) se misturam também doenças físicas (o tuberculoso do quarto 7 que morre na casa de pensão, a loucura e histerismo de Nini...). Foi o que encontrou Amâncio na Casa de Pensão de Mme. Brizard. Fora para o Rio de Janeiro, para estudar. E, num ambiente como esse, quem seria capaz de estudar? É verdade que o rapaz já trazia a sua mentalidade burguesa do tempo: o que ele buscava não era uma profissão, mas apenas um diploma e um título de doutor. Ele, sendo rico, não precisaria da profissão, mas, por vaidade, de um status, de um anel no dedo e de um diploma na parede. Essa mania de doutor, doença que pegou no Brasil, já foi magistralmente caricaturada em deliciosa carta de Eça de Queirós ao nosso Eduardo Prado: "A nação inteira se doutorou. Do norte ao sul do Brasil, não há, não encontrei senão doutores! Doutores com toda a sorte de insígnias, em toda a sorte de funções!! Doutores com uma espada, comandando soldados; doutores com uma carteira, fundando bancos: doutores com uma sonda, capitaneando navios; doutores com uma apito, comandando a polícia; doutores com uma lira, soltando carnes; doutores com um prumo, construindo edifícios; doutores com balanças, ministrando drogas; doutores sem coisa alguma, governando o Estado! Todos doutores..." O próprio Aluísio de Azevedo abandonou a Província para buscar sucessos na Corte (Rio de Janeiro) e, certamente também, um título de doutor...

Personagens

Os personagens, sob nomes fictícios, escondem pessoas reais:
Amâncio da Silva Bastos e Vasconcelos - (João Capistrano da Silva) estudante, acusado de sedução. Foi absolvido.
Amélia ou Amelita - (Júlia Pereira) a moça seduzida, pivô da tragédia.
Mme. Brizard - (D. Júlia Clara Pereira, mãe da moça e do rapaz, assassino) é uma viúva, dona da casa de pensão. 
João Coqueiro - Janjão - (Antônio Alexandre Pereira, irmão da moça Júlia Pereira e assassino de João Capistrano. Foi também absolvido).
Dr. Teles de Moura - (Dr. Jansen de Castro Júnior) advogado da família da moça.

Enredo
Amâncio (Da Silva Bastos e Vasconcelos), rapaz rico e provinciano, abandona o Maranhão e segue de navio para o Rio de Janeiro (a Corte) a fim de se encaminhar nos estudos e na vida. É um provinciano que sonha com os deslumbramentos da Corte. Chega cheio de ilusões e vazio de propósitos de estudar... A mãe fica chorosa e o pai, indiferente, como sempre fora no trato meio distante com o filho. O rapaz tinha que se tornar um homem.
Amâncio começa morando em casa do sr. Campos, amigo do Pai, e, forçado, se matricula na Escola de Medicina. Ia começar agora uma vida livre para compensar o tempo em que viveu escravizado às imposições do pai e do professor, o implacável Pires.
Por convite de João Coqueiro, co-proprietário de uma casa de pensão, junto com a sua velhusca mulher Mme. Brizard, muda-se para lá. É tratado com as maiores preferências: os donos da pensão queriam aproveitar o máximo de seu dinheiro e ainda arranjar o seu casamento com Amélia, irmã de Coqueiro. Um sujo jogo de baixo interesses, sobretudo de dinheiro. Naquele ambiente, tudo concorreria para fazer explodir a super-sensualidade do maranhense.
"Ele, coitado, havia fatalmente de ser mau, covarde e traiçoeiro: Na ramificação de seu caráter e sensualidade era o galho único desenvolvido e enfolhado, porque de todos só esse podia crescer e medrar sem auxílios exteriores."
A casa de pensão era um amontoado de gente, em promiscuidade generalizada, apesar da hipócrita moralidade pregada pelo seu dono: havia miséria física e moral, clara e oculta. Com a chegada de Amâncio, a pensão passou a arapuca para prender nos seus laços o jovem, inesperto e rico estudante: pegar o seu dinheiro e casá-lo com a irmã do Coqueiro. Para alcançar o fim, todos os meios eram absolutamente lícitos. Amélia, principalmente quando da doença do rapaz, se desdobrou nos mais íntimos cuidados. Até que se tornou, disfarçadamente, sua amante. Sempre mantendo as aparências do maior respeito exigido dentro da pensão pelo João Coqueiro...
O pai de Amâncio morre no Maranhão. A mãe chama o filho. Ele pretendo voltar, logo que terminarem os seus exames de medicina. Era preciso que o filho voltasse para vê-la e ver os negócios que o pai deixara. Mas o rapaz está preso à casa de pensão e a Amélia: este o ameaça e só permite sua ida ao Maranhão, depois do casamento. Amâncio prepara sua viagem às escondidas. Mas, no dia do embarque, um oficial e justiça acompanhado de policiais o prende para apresentação à delegacia e prestação de depoimentos. Amâncio é acusado de sedutor da moça. João Coqueiro prepara tudo: o caso foi entregue ao famigerado e chicanista Dr. Teles de Moura. Aparecem duas testemunhas contra o rapaz. Começa o enredado processo: uma confusão de mentiras, de fingimentos, de maucaratismo contra o jovem rico e desfrutável para os interesses pecuniários de Mme. Brizard e marido. Há uma ressonância geral na imprensa e, na maioria, os estudantes se colocam ao lado de Amâncio. O senhor Campos prepara-se para ajudar o seu protegido, mas Coqueiro lhe faz chegar às mãos uma carta comprometedora que Amâncio escrevera à sua senhora, D. Hortênsia. E se coloca contra quem não soube respeitar nem a sua casa...
Três meses depois de iniciado o processo, Amâncio é absolvido. O rapaz é levado em triunfo para um almoço, no Hotel Paris.
"Amâncio passava de braço a braço, afagado, beijado, querido, como uma mulher famosa." Todo mundo olhava com curiosidade e admiração o estudante absolvido. E lhe atiravam flores, Ouviam-se vivas ao estudante e à Liberdade. Os músicos alemães tocaram a Marselhesa. Parecia um carnaval carioca.
Em outro plano, Coqueiro, sozinho, vendo e ouvindo tudo. A alma envenenada de raiva. Em casa o destampatório da mulher que o acusava de todo o fracasso. As testemunhas reclamavam o pagamento do seu depoimento. Um inferno dentro e fora dele. Chegaram cartas anônimas com as maiores ofensas. Um homem acuado...
Pegou, na gaveta, o revólver do pai. E pensou em se matar. Carregou a arma. Acertou o cano no ouvido. Não teve coragem. Debaixo da sua janela, gritavam injúrias pela sua covardia e mau caráter... No dia seguinte, de manhã, saiu sinistro. Foi ao Hotel Paris. Bateu no quarto II, onde se encontrava o estudante com a rapariga Jeanete. Esta abriu a porta. Amâncio dormia, depois da festa e da bebedeira, de barriga para cima. Coqueiro atirou a queima-roupa. Amâncio passa a mão no peito, abre os olhos, não vê mais ninguém. Ainda diz uma palavra: "mamãe" ... e morre.
Coqueiro foi agarrado por um policial, ao fugir. A cidade se enche de comentários. Muitos visitam o necrotério para ver o cadáver de Amâncio. Vendem-se retratos do morto. Um funeral grandioso com a presença de políticos, notícias e necrológicos nos jornais, a cidade toda abalada. A tragédia tomou conta de todos.
A opinião pública começa a flutuar, a mudar de posição: afinal, João Coqueiro tinha lavado a honra da irmã...
Quando D. Ângela, envelhecida e enlutada, chega ao Rio de Janeiro, se viu no meio da confusão, procurando o filho. Numa vitrine, ela descobriu o retrato do filho "na mesa do necrotério, com o tronco nu, o corpo em sangue. Uma legenda: "Amâncio de Vasconcelos, assassinado por João Coqueiro, no Hotel Paris...

Olavo Bilac

Os amantes da literatura certamente aplaudem a decisão de Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac, que abandonou os cursos de medicina e direito para se dedicar à poesia. Além de poeta, foi jornalista, crítico, inspetor da Instrução Pública e membro do Conselho Superior do Departamento Federal. Pertenceu à Escola Parnasiana Brasileira, sendo um dos seus principais representantes, ao lado de Alberto de Oliveira e Raimundo Correia. Para os seus mais fervorosos admiradores, Olavo Bilac nasceu mesmo predestinado à poesia, pois o seu nome completo é um verso alexandrino (12 sílabas poéticas).
Membro-fundador da Academia Brasileira de Letras, ocupou a cadeira número 15 da entidade, cujo patrono é outro poeta: Gonçalves Dias. A sua preocupação em atingir a perfeição é refletida em alguns poemas, que possuem uma grande beleza pelo ritmo e sonoridade. Boêmio inveterado, Olavo Bilac também foi um dos maiores defensores da abolição da escravatura, unindo-se a José do Patrocínio.
Começou a ganhar fama entre os escritores brasileiros com a publicação de "Poesia" (1888). Doze anos mais tarde, seguiu para Paris como correspondente da publicação "Cidade do Rio". Encantando com a capital francesa, Olavo Bilac passou a visitar regularmente a cidade, nos anos seguintes.
Um dos fundadores da Liga da Defesa Nacional (da qual foi secretário-geral), lutou pelo serviço militar obrigatório, que considerava uma forma de combater o analfabetismo. Na adolescência, foi bastante influenciado pelos poetas franceses. Suas poesias revelam uma grande emoção, um certo erotismo e influência marcante da poesia portuguesa dos séculos 16 e 17. Nas duas primeiras décadas do século 20, os seus poemas eram declamados em saraus e salões literários, comuns na época.
A correção da linguagem, o rigor da forma e a espontaneidade são as principais características de seus versos. Além de "Poesias", publicou também "Crônicas e Novelas", "Conferências Literárias", "Ironia e Piedade", entre outras obras, como crônicas, conferências literárias, discursos, livros infantis e didáticos. Olavo Bilac, autor do Hino à Bandeira Nacional, fez oposição ao governo do marechal Floriano Peixoto. Perseguido pelo governo do marechal, Olavo Bilac ficou um tempo escondido no interior de Minas Gerais. Quando regressou ao Rio, foi preso.
O talento literário de Olavo Bilac começou a ser notado quando ela tinha 19 anos. Em 1884, o seu soneto "Nero" foi publicado na "Gazeta de Notícias", à época um dos mais importantes jornais do Rio de Janeiro. No começo do século 20, o reconhecimento nacional: foi eleito o "príncipe dos poetas brasileiros", pela revista "Fon-Fon", que realizou um concurso. Um dos destaques de sua obra é o livro póstumo "Tarde", publicado em 1919, ano seguinte à sua morte. Olavo Bilac também fundou vários jornais, como "A Cigarra", "O Meio" e "A Rua", que tiveram vida efêmera.

Textos Escolhidos
OUVIR ESTRELAS
"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muitas vezes desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...
E conversamos toda a noite, enquanto
A via-láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.
Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?"
E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas."
(Poesias, Via-Láctea, 1888.)

NEL MEZZO DEL CAMIN...
Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E a alma de sonhos povoada eu tinha...
E paramos de súbito na estrada
Da vida: longos anos, presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.
Hoje, segues de novo... Na partida
Nem o pranto os teus olhos umedece,
Nem te comove a dor da despedida.
E eu, solitário, volto a face, e tremo,
Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo.
(Poesias, Sarças de fogo, 1888.)

A UM POETA
Longe do estéril turbilhão da rua,
Beneditino, escreve! No aconchego
Do claustro, no silêncio e no sossego,
Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!
Mas que na forma se disfarce o emprego
Do esforço; e a trama viva se construa
De tal modo, que a imagem fique nua,
Rica, mas sóbria, como um templo grego.
Não se mostre na fábrica o suplício
Do mestre. E, natural, o efeito agrade,
Sem lembrar os andaimes do edifício:
Porque a Beleza, gêmea da Verdade,
Arte pura, inimiga do artifício,
É a força e a graça na simplicidade.
(Tarde, 1919.)

LÍNGUA PORTUGUESA
Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura;
Ouro nativo, que, na ganga impura,
A bruta mina entre os cascalhos vela...
Amo-te assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!
Amo o teu viço e o teu aroma
De virgens selvas e de oceanos largos!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,
Em que da voz materna ouvi: "meu filho!"
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!
(Tarde, 1919.)

AS ONDAS
Entre as trêmulas mornas ardentias,
A noite no alto mar anima as ondas.
Sobem das fundas úmidas Golcondas,
Pérolas vivas, as nereidas frias:
Entrelaçam-se, correm fugidias,
Voltam, cruzando-se; e, em lascivas rondas,
Vestem as formas alvas e redondas
De algas roxas e glaucas pedrarias.
Coxas de vago ônix, ventres polidos
De alabatro, quadris de argêntea espuma,
Seios de dúbia opala ardem na treva;
E bocas verdes, cheias de gemidos,
Que o fósforo incendeia e o âmbar perfuma,
Soluçam beijos vãos que o vento leva...
(Tarde, 1919.)

OS SINOS
Plangei, sinos! A terra ao nosso amor não basta...
Cansados de ânsias vis e de ambições ferozes,
Ardemos numa louca aspiração mais casta,
Para transmigrações, para metempsicoses!
Cantai, sinos! Daqui por onde o horror se arrasta,
Campas de rebeliões, bronzes de apoteoses,
Badalai, bimbalhai, tocai à esfera vasta!
Levai os nossos ais rolando em vossas vozes!
Em repiques de febre, em dobres a finados,
Em rebates de angústia, ó carrilhões, dos cimos
Tangei! Torres da fé, vibrai os nossos brados!
Dizei, sinos da terra, em clamores supremos,
Toda a nossa tortura aos astros de onde vimos,
Toda a nossa esperança aos astros aonde iremos!
(Tarde, 1919.)

HINO À BANDEIRA
Salve, lindo pendão da esperança,
Salve, símbolo augusto da Paz!
Tua nobre presença à lembrança
A grandeza da Pátria nos traz.
Recebe o afeto que se encerra
em nosso peito juvenil,
Querido símbolo da terra,
Da amada terra do Brasil.
Sobre a imensa nação Brasileira
Nos momentos de festa e de dor,
Paira sempre, sagrada bandeira
Pavilhão da Justiça e do Amor!
Recebe o afeto que se encerra
Em nosso peito juvenil,
Querido símbolo da terra,
Da amada terra do Brasil.

O CAÇADOR DE ESMERALDAS
III
Fernão Dias Pais Leme agoniza. Um lamento
Chora longo, a rolar na longa voz do vento.
Mugem soturnamente as águas. O céu arde.
Trasmonta fulvo o sol. E a natureza assiste,
Na mesma solidão e na mesma hora triste,
À agonia do herói e à agonia da tarde.
Piam perto, na sombra, as aves agoireiras.
Silvam as cobras. Longe, as feras carniceiras
Uivam nas lapas. Desce a noite, como um véu...
Pálido, no palor da luz, o sertanejo
Estorce-se no crebo e derradeiro arquejo.
- Fernão Dias Pais Leme agoniza, e olha o céu.
Oh! esse último olhar ao firmamento! A vida
Em surtos de paixão e febre repartida,
Toda, num só olhar, devorando as estrelas!
Esse olhar, que sai como um beijo da pupila,
- Que as implora, que bebe a sua luz tranqüila,
Que morre... e nunca mais há de vê-las!
Ei-las todas, enchendo o céu, de canto a canto...
Nunca assim se espalhou, resplandecendo tanto,
Tanta constelação pela planície azul!
Nunca Vênus assim fulgiu! Nunca tão perto,
Nunca com tanto amor sobre o sertão deserto
Pairou tremulamente o Cruzeiro do Sul!
Noites de outrora!... Enquanto a bandeira dormia
Exausta, e áspero o vento em derredor zunia,
E a voz do noitibó soava como um agouro,
- Quantas vezes Fernão, do cabeço de um monte,
Via lenta subir do fundo do horizonte
A clara procissão dessas bandeiras de ouro!
Adeus, astros da noite! Adeus, frescas ramagens
Que a aurora desmanchava em perfumes selvagens!
Ninhos cantando no ar! suspensos gineceus
Ressoantes de amor! outonos benfeitores!
Nuvens e aves, adeus! adeus, feras e flores!
Fernão Dias Pais Leme espera a morte... Adeus!
O Sertanista ousado agoniza, sozinho...
Empasta-lhe o suor a barba em desalinho;
E com a roupa de couro em farrapos, deitado,
Com a garganta afogada em uivos, ululante,
Entre os troncos da brenha hirsuta, - o Bandeirante
Jaz por terra, à feição de um tronco derribado...
E o delírio começa. A mão, que a febre agita,
Ergue-se, treme no ar, sobe, descamba aflita,
Crispa os dedos, e sonda a terra, e escava o chão:
Sangra as unhas, revolve as raízes, acerta,
Agarra o saco, e apalpa-o, e contra o peito o aperta,
Como para o enterrar dentro do coração.
Ah! mísero demente! o teu tesouro é falso!
Tu caminhaste em vão, por sete anos, no encalço
De uma nuvem falaz, de um sonho malfazejo!
Enganou-te a ambição! mais pobre que um mendigo,
Agonizas, sem luz, sem amor, sem amigo,
Sem ter quem te conceda a extrema-unção de um beijo!
E foi para morrer de cansaço e de fome,
Sem ter quem, murmurando em lágrimas teu nome,
Te dê uma oração e um punhado de cal,
- Que tantos corações calcaste sob os passos,
E na alma da mulher que te estendia os braços
Sem piedade lançaste um veneno mortal!
E ei-la, a morte! e ei-lo, o fim! A palidez aumenta;
Fernão Dias se esvai, numa síncope lenta...
Mas, agora, um clarão ilumina-lhe a face:
E essa face cavada e magra, que a tortura
Da fome e as privações maceraram, - fulgura,
Como se a asa ideal de um arcanjo a roçasse.
IV
Adoça-se-lhe o olhar, num fulgor indeciso;
Leve, na boca aflante, esvoaça-lhe um sorriso...
- E adelgaça-se o véu das sombras. O luar
Abre no horror da noite uma verde clareira.
Como para abraçar a natureza inteira,
Fernão Dias Pais Leme estira os braços no ar...
Verdes, os astros no alto abrem-se em verdes chamas;
Verdes, na verde mata, embalançam-se as ramas;
E flores verdes no ar brandamente se movem.
Chispam verdes fuzis riscando o céu sombrio;
Em esmeraldas flui a água verde do rio,
E do céu, todo verde, as esmeraldas chovem...
E é uma ressurreição! O corpo se levanta:
Nos olhos, já sem luz, a vida exsurge e canta!
E esse destroço humano, esse pouco de pó
Contra a destruição se aferra à vida, e luta,
E treme, e cresce, e brilha, e afia o ouvido, e escuta
A voz, que na solidão só ele escuta, - só:
"Morre! morrem-te às mãos as pedras desejadas,
"Desfeitas como um sonho, e em lodo desmanchadas...
"Que importa? dorme em paz, que o teu labor é findo!
"Nos campos, no pendor das montanhas fragosas,
"Como um grande colar de esmeraldas gloriosas,
"As tuas povoações se estenderão fulgindo!
"Quando do acampamento o bando peregrino
"Saía, ante manhã, ao sabor do destino,
"Em busca, ao Norte e ao Sul, de jazida melhor,
" - No cômoro de terra, em que teu pé poisara,
"Os colmados de palha aprumavam-se, e clara
"A luz de uma lareira espancava o arredor.
"Nesse louco vagar, nessa marcha perdida,
"Tu foste, como o sol, uma fonte de vida:
" Cada passada tua era como um caminho aberto!
"Cada pouso mudado, uma nova conquista!
"E enquanto ias, sonhando o teu sonho egoísta,
"Teu pé, como o de um deus, fecundava o deserto!
"Morre! tu viverás nas estradas que abriste!
"Teu nome rolará no largo choro triste
"Da água do Guaicuí... Morre, Conquistador!
"Viverás quando, feito em seiva o sangue, aos ares
"Subires, e, nutrindo uma árvore, cantares
"Numa ramada verde entre um ninho e uma flor!
"Morre! germinarão as sagradas sementes
"Das gotas de suor, das lágrimas ardentes!
"Hão de frutificar as fomes e as vigílias!
"E um dia, povoada a terra em que te deitas,
"Quando, aos beijos do sol, sobrarem as colheitas,
"Quando, aos beijos do amor, crescerem as famílias,
"Tu cantarás na voz dos sinos, nas charruas,
"No esto da multidão, no tumultuar das ruas,
"No clamor do trabalho e nos hinos da paz!
"E, subjugando o olvido, através das idades,
"Violador de sertões, plantador de cidades,
"Dentro do coração da pátria viverás!"
Cala-se a estranha voz. Dorme de novo tudo.
Agora, a deslizar pelo arvoredo mudo,
Como um choro de prata algente o luar escorre.
E sereno, feliz, no maternal regaço
Da terra, sob a paz estrelada do espaço,
Fernão Dias Pais Leme os olhos cerra. E morre.