Resumos das obras Urca 2011.2

A Carta - Pero Vaz de Caminha
A carta que Pero Vaz de Caminha escreveu para D. Manuel, o rei de Portugal na época do descobrimento do Brasil, relata com detalhes a chegada dos portugueses no Brasil, como foram os primeiros contatos destes com os indígenas e, a partir desta carta, podemos perceber as intenções portuguesas quanto à nova terra e, o que seria dela depois de então. A partida frota portuguesa de Belém-Portugal ocorreu no dia 9 de março, a chegada às Canárias no dia 14 do mesmo mês, e no dia 22 chegaram à ilha de São Nicolau. No dia 21 de abril, toparam com sinais de terra, o que eles chamam de botelho, espécie de ervas compridas. No dia seguinte, houveram vista de terra, que foi chamada de Terra De Vera Cruz, a qual tinha um monte alto, que recebeu o nome de o Monte Pascoal. Avistaram os primeiros habitantes da terra, os quais eram, de acordo com a descrição de Caminha, pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e narizes, nus, traziam arcos e setas, o beiço de baixo furado com um osso metido nele, cabelos corredios e corpos pintados. Com eles tentaram estabelecer um primeiro contato, o que foi uma surpresa, pois um deles começou a apontar para o colar de ouro do capitão da frota e, em seguida, para a terra, como se quisesse dizer que naquela terra havia ouro. A mesma coisa ocorreu com o castiçal de prata e o papagaio. Ao verem coisas que não conheciam, faziam sinais, dando-se a entender que queriam propor uma troca.
Conclui-se então, que desta forma começou a troca de ouro, prata e madeira, por quinquilharias vindas da Europa. Os portugueses traziam os indígenas para as embarcações, a fim de estabelecer um melhor contato com os indígenas. No início, eles mostraram-se muito esquivos, mas com o passar dos dias, passaram a conviver mais com os portugueses e, até mesmo, à ajudá-los no que precisavam e levá-los às suas aldeias. Os portugueses realizaram uma missa, construíram uma enorme cruz. Tudo para mostrar aos nativos a acatamento que tinham pela cruz, ou melhor, pela religião. Desde já, possuíam a vontade de convertê-los à igreja, tendo em vista, sua inocência, já que faziam tudo o que os portugueses faziam ou mandavam... A intenção de dominá-los é facilmente observada na seguinte passagem: "Contudo, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente."

Pero Vaz de Caminha
O primeiro jornalista e o poeta do descobrimento do Brasil
Todo mundo já ouviu falar de “Pero Vaz de Caminha”, o qual fez e enviou uma carta ao Rei de Portugal e quase sempre se houve dizer: aquele que disse a respeito do Brasil, mas, nas entranhas do assunto quase ninguém comenta a realidade dessa carta maravilhosa, que nos deu a formatação deste imenso Brasil, um presente que Portugal nos deu e quem foi o ilustre cidadão português? O que ele era? E como foi indicado para relatar essa viagem? É o que vamos detalhar.
O principal documento sobre a descoberta do Brasil saiu da pena de Pero Vaz de Caminha, que era amigo do Rei de Portugal D. Manuel I, e por ele indicado para ser o cronista dessa viagem que durou 54 dias, sendo que o mesmo anotou tudo que se passou desde a saída de Lisboa com 13 navios e do porto do Restelo no dia 09 de março de 1500 e a chegada ao Brasil no dia 22 de abril desse mesmo ano.
Na sua crônica de 14 folhas em um papel de “florete”, detalhou essa viagem, muitas vezes com coisas pitorescas, outras com poesias, falando desse local, dessa terra de árvores e florestas, onde os homens andavam nus e ficou provado mais uma vez que o Brasil já era do conhecimento dos Reis de Portugal e vindo a baixo a tese que foi descoberto por acaso, uma vez que já conheciam essas terras desde o ano de 1300, prova disso com o tratado da “Bula Inter-Pares” do Papa e depois o “Tratado das Tordesilhas” e o porquê de enviar 13 navios com quase 5 mil homens, para que? na realidade para tomar posse das terras descobertas por “Sancho Brandão” português, que no ano de 1300 descobriu as terras do Brasil e o Rei de Portugal guardou todos os detalhes na “Torre do Tombo” em Lisboa, com receio de que a “Catalunha Espanha” pudesse saber e vir para o Brasil, uma vez que quem demarcava as terras descobertas era o “Papa” na época a “ONU” mundial e o Papa era Espanhol, e só após a descoberta da América por Colombo, que despertou o temor de Portugal e aí o Papa já era alemão, resolveram dar seqüência à descoberta, criando essa viagem fantástica.
A carta de Pêro Vaz de Caminha seguiu para Portugal no dia 02 de maio de 1500, e ficou escondida na Torre do Tombo por dois séculos e meio, e só foi descoberta em 1773 pelo guarda-mor do arquivo da Torre do Tombo e só foi publicada no ano de 1817. Esse original chegou a vir para o Brasil em meio a documentos da Biblioteca da Academia Real dos Guarda-Marinhas, após anos da família real vir para o Brasil no início do século 19 e retornou a Portugal, estando guardada num cofre da própria Torre do Tombo, como o mais sagrado documento da descoberta do fenomenal Brasil, ou seja, a Certidão de Nascimento do Brasil que prova que a mãe-pátria foi a mãe e o pai do Brasil.
Nenhum país do mundo tem a sua certidão de nascimento feita no seu nascedouro, ele foi o tabelião dessa grandeza toda, uma obra prima de um mestre jornalístico, feita por um cidadão lusitano cheio de uma visão magnética e poética, ele, Caminha foi o maior cronista da história do Brasil e de Portugal.
Para conhecimento das pessoas, vou transcrever um trecho dessa maravilhosa carta, a “Carta de Pero Vaz de Caminha”:
SENHOR, Posto que o capitão-mor dessa vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a nova de achamento desta vossa terra nova, que nesta navegação agora a achou. Não deixarei também de dar minha conta a Vossa Alteza, o melhor que eu puder, ainda que para o em contar e falar, o saiba fazer pior que todos.
Tome Vossa Alteza, porém, minha ignorância por boa vontade, e creia bem por certo que, para alindar nem afrear, não porei aqui mais do que aquilo que vi e me pareceu.
Naturalmente a carta foi escrita ainda na mudança do português arcaico para o português moderno. Depois descreve toda a viagem e no final, diz o seguinte: E dessa maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta terra eu vi. E, se algum pouco me alonguei, me perdoe, pois o desejo que tinha de tudo dizer, me fez pôr assim pelo miúdo. Beijo as mãos de Vossa Alteza,
Deste Porto Seguro, da vossa Ilha da Vera Cruz, hoje sexta-feira, primeiro dia de Maio de 1500.
Pero Vaz de Caminha.


O Ano da Morte de Ricardo Reis - José Saramago
Neste magnífico romance, o heterônimo mais clássico do grande poeta português Fernando Pessoa, o horaciano Ricardo Reis, acha-se novamente em Lisboa, depois de uma temporada no Brasil, onde se auto-exilara. O ano é o de 1936. Médico, educado pelos jesuítas e monarquistas, ele é um sábio capaz de se contentar em assistir ao espetáculo do mundo, como diz numa das epígrafes do livro. Aqui, porém, ele se vê confrontado com os acontecimentos de 1936, em Portugal e fora dele; de um lado, a ditadura fascista de Salazar; de outro, a gestação da Segunda Guerra Mundial, a Frente Popular francesa, a Guerra Civil espanhola, a expansão nazista na Europa. Um confronto, enfim, com um mundo que decerto não era um espetáculo.
Ricardo Reis é uma criação de Fernando Pessoa. Mais propriamente, é um dos seus heterônimos. Talvez deva esclarecer que Fernando Pessoa teve uma obra multifacetada, que intencionalmente dividiu em 4 conjuntos, criando um heterônimo para assumir cada uma das diferentes facetas do seu trabalho. Eu, pessoalmente, prefiro os poemas que assinou com o próprio nome.
José Saramago ousou dar corpo a um desses personagens de ficção. Cria-lhe uma vida e fá-lo interagir com Fernando Pessoa (morto).
Esta ligação dura aproximadamente nove meses. Saramago leva-nos através de uma ideia inovadora. Demoramos nove meses para chegar ao mundo, e demoramos o mesmo tempo a deixá-lo. É um processo de transição, durante o qual o morto vai esquecendo o que foi estar vivo, os caminhos percorridos, os sentimentos vividos. Descobre que nada importa. Nada do que vivemos importa. Chegado ao fim desse tempo, o morto está pronto para partir.
No momento em que Pessoa vai despedir-se de Ricardo Reis, porque chegou a sua hora de deixar definitivamente o mundo, recebe uma resposta inesperada: “Vou consigo”. É um fim brilhante, para a história.
Que bom seria se para cada um de nós, a morte se tornasse efetiva no instante da nossa escolha. Algo como, simplesmente, desligar-se da vida.
O tema morte aparece muitas vezes na obra de Saramago. Recomenda-se a leitura de “As Intermitências da Morte”.


Hai-kais
Millôr Fernandes, em seu livro Hai-kais, se vale da tradicional forma poética oriental para destilar sarcasmo, humor e poesia. É um livro singelo, despretensioso, mas que mostra o poder e a força métrica dos hai-kais. Ao traduzir o estilo para a realidade brasileira, introduz um estilo mais leve, mais humorístico, por vezes, pueril. Ainda assim não perde a essência reflexiva, a qualidade de contemplação do mundo. Millôr, neste livro, brasileiriza ao extremo os hai-kais, dando-lhes nova vida e perspectiva.

Hai Kai I
Na poça da rua
O vira-lata
Lambe a Lua.

Hai Kai II
A palmeira e sua palma
Ondulam o ideal
Da calma.

Hai Kai III
O veludo
Tem um perfume
Mudo.

Hai Kai IV
Meu dinheiro
Vem todo
Do meu tinteiro

Hai Kai V
Nos dias quotidianos
É que se passam
Os anos

Comentário
Em Millôr densidade, secura, economia e comunicabilidade poética brilham diamantes.
Passeio aflito;
Tantos amigos
Já granito.

Nesse hai-kai a morte entrelaça ação (eu passeio; verbo) e local (o passeio; substantivo) num único vocábulo.  Semelhantemente à língua chinesa, a palavra perde a classe gramatical normativa para gerar uma gramática própria.  Isso é poesia.  O resto pode ser "sabor da nova geração", nunca poesia.
Considere, ainda, que o granito da laje tumular passa para o da calçada por onde o eu poético passeia. (Belíssimo!) Esse eu vai sendo, pouco a pouco, tomado pela aflição da saudade/lembrança de "tantos amigos". Quais amigos?  Todos.  Os que já se foram e os que caminham no horizonte do possível.  Eis aí o alcance da poesia de Millôr: abraçar o amigo particular, o amigo público, a dor universal dos "tantos amigos" indo ou idos.  Abraçar o sentimento doido de permanecer vivo com "tantos amigos / já granito".
Mas não só de morte vive a poesia de Millôr: política (reforma agrária, isolamento dos justos, inviabilidade da ação dos políticos); religião (anacronismo religioso, moralidade religiosa, vaidade passageira), amor (infidelidade amorosa, encantos da sexualidade feminina); condição humana (incomunicabilidade, solidão, desajuste social, cansaço de viver); poesia (o fazer poético, recriação de Bashô); natureza (aflitiva, lúdica, bela, devastada); mídia (medíocre e mediocrizante) são temas que marcam presença, como sé vê, ora cáustica, ora terna, em seus poemas.
Os Hai-Kais de Millôr são um verdadeiro presente de papai Noel. Certo; um papai Noel saído da canção de Assis Valente, a quem se pede a felicidade, duvidando. Mas de quem se recebe toda a beleza da poesia.  E Millôr dá as mãos a Assis Valente.
Ele gosta de usar o computador para escrever e desenhar. Uma das inteligências mais agudas deste país. Sensível e iluminado.
Arredio a entrevistas, recentemente rompeu o silencio e revelou muito do que pensa ao repórter do suplemento Idéias do JB. Uma visão cética, hilariante, incômoda ? mas sempre real e certeira.
É Millôr Fernandes, mais conhecido como humorista.  Na verdade, um fino pensador brasileiro.  E, agora, poeta. Quer dizer, poeta sempre foi; a reunião dos hai-kais e a publicação em livro é que consolidam um poeta e seu livro de poemas ? até então disperses.
O titulo do livro? Hai-Kais, simplesmente. Seleção dos 93 mais expressivos hai-kais que Millôr compôs nos últimos 30 anos. Um lançamento rigoroso da editora Nórdica para um belíssimo projeto gráfico de Vilmar Rodrigues.
O volume, de 21 x 21 em, capa dura branca, grafada em dourado, ainda conta com uma capa sobressalente amarela, ilustrada por Millôr. As cores, branco e amarelo, ora como moldura, ora como fundo de página, geram um vibrátil diálogo entre as páginas pares e as páginas impares. Aquilo que em outros livros escorrega para saturação, aqui desliza na precisão milimétrica informativa. E tensiona poemas e ilustrações num pique (timing) extraordinariamente arrebatador.
A beleza dos trabalhos de Millôr é valorizada pelo profissionalismo de Vilmar Rodrigues. Quem ganha é o leitor.  Os poemas encontram o meio de expressão adequado.
Eisenstein: "Um livro tem que estar na mão que o segura como se fosse um instrumento bem ajustado". Diante de Hai-Kais não há como não confirmar tais palavras e ainda, lembrar Borges: "Dos diversos instrumentos utilizados pelo homem, o mais espetacular é, sem dúvida, o livro”.
Millôr impõe-se (de leve, pela contra mão) um poeta da linha de frente da atual poesia brasileira. Não importa se a intelligentzia nacional rotula humorista de intelectual de segunda classe. Seus hai-kais fazem frente aos belissimos de Olga Savary.  Tiram de letra os de Alice Ruiz e saltam sobre os de Paulo Leminski.  Mas como sempre apareceram na página de humor de revistas e jornais, a critica os deixou na banca dos descartáveis.
Com esta publicação chega a hora de todo leitor tirar os óculos unidirecionais dos “preconceitos” e, oswaldianamente, arriscar o olhar dos olhos livres.



Fogo Morto
Publicado em 1943, "Fogo Morto", é uma contundente visão do processo de mudanças sociais e econômicas do Nordeste brasileiro. O título refere-se à transformação do Engenho Santa Fé, localizado na zona da mata da Paraíba, de núcleo de poder econômico a pólo de miséria, com o apagar definitivo de suas fornalhas.
"Fogo morto" é a expressão utilizada no Nordeste para denunciar a inatividade de um engenho. A forma como José Lins conta esse processo ultrapassa a mera classificação geralmente dada ao livro de romance regionalista e o insere na tradição brasileira, que inclui "O Cortiço", de Aluísio de Azevedo, como narrativa que toma como protagonista não um personagem isolado, mas um local, no caso, o engenho decadente.
Estilo do autor
Marcado por frases curtas, pela espontaneidade e oralidade, próprias do cotidiano, o estilo do autor já se faz presente em "Menino de Engenho", seu primeiro romance, de 1932, que lhe rendeu o Prêmio da Fundação Graça Aranha. Esse livro já integra o seu ciclo da cana-de-açúcar, completado ainda por "Doidinho" (1933), "Bangüê" (1934), "O Moleque Ricardo" (1935), "Usina" (1936) e o próprio "Fogo Morto" (1943).
O último romance dessa saga nordestina é dividido em três partes: "Mestre José Amaro", "O Engenho de Seu Lula" e "Capitão Vitorino Carneiro da Cunha". A primeira trata especificamente do seleiro homônimo. Cada vez mais ensimesmado e agressivo, é abandonado pela esposa, vê a filha enlouquecer e perde o emprego com a progressiva crise econômica. Solitário, suicida-se.
Engenho em declínio
A segunda focaliza o próprio Engenho Santa Fé. Inicialmente, há a prosperidade levada adiante pelo fundador, o capitão Tomás Cabral de Melo. Já o seu genro, Luís César de Holanda Chacon, o Seu Lula, mais aristocrático, religioso e extremamente preconceituoso em relação aos negros, conduz o empreendimento ao declínio.
O Capitão Vitorino é o centro das atenções na parte final. Compadre de mestre Amaro e ironizado até a segunda parte do livro, torna-se, no último terço, um Dom Quixote (alusão ao personagem de Miguel de Cervantes) do sertão nordestino, com todo um discurso em prol da justiça e da igualdade social, que desafia o poder dos latifundiários. Sonhava então em atingir o poder político e, mesmo sem possibilidades concretas de tornar esse desejo realidade, imagina-se em postos de comando, escolhendo assessores e recebendo aclamações da população.
Temos assim, a narrativa de três fracassos: o seleiro que dá fim à sua existência isolado, o engenho cujo fogo não é mais aceso e o sonhador que vive mergulhado em suas fantasias de atingir uma posição social que está, na prática, bem distante dele. Essas derrotas são narradas com vigor por um escritor que, como mostrou seu discurso de posse na ABL, nunca se preocupou em agradar ao poder, seja na esfera literária, econômica ou política.
Oscar D'Ambrosio*



Florbela Espanca, a alma em expansão
Florbela Espanca foi uma poeta de extraordinária sensibilidade, nascida em 1894 em Vila Viçosa, Portugal. Desde criança fazia versos originados de uma necessidade interior, que segundo os críticos, mesmo com erros de ortografia eram avançados em relação à sua idade. É o processo de criação para atender às pressões do inconsciente e que levaram Florbela a uma permanente angustia de nunca conseguir expressar-se na proporção em que a força erótica de sua alma oculta o exigia. Como diz seu critico José Regis, em estudo de 1952: “...Nem o Deus que viesse amá-la, sendo um Deus, lograria satisfazer a sua ansiedade...
Sempre suas manifestações poéticas estavam aquém da necessidade desse outro ser, um inconsciente imaginativo a impulsionar os sentimentos desde dentro. Mas ela avançava sem preocupar-se muito com a poesia que circulava nos meios literários a seu redor. As revistas e movimentos como “Orfeu”, “Presença”, e outros, nada significavam de muito importante para ela e nisso o próprio modernismo passou desapercebido em sua obra. Florbela poetava por uma necessidade intrínseca e seu estilo não se detinha em acompanhar escolas e modas da época.
Era, portanto, um vulcão de paixões inexplicáveis com fortes elementos do inconsciente coletivo, aflorando, além da expressão de sua alma traduzida pela metáfora do feminino, que no caso de Florbela era um fato plasmado através do narcisismo, utilizando-se para tanto de sua própria imagem. Resulta interessante notar essas sinalizações destacadas por José Régio: “...viveu a fundo esses estados quer de depressão, quer de exaltação, quer de concentração em si mesma, quer de dispersão em tudo, que na sua poesia atingem tão vibrante expressão...” Mais adiante em relação ao feminino “...Também de certo aparecem na nossa poesia autenticas poetisas, antes e depois de Florbela. Nenhuma, porém até hoje, viveu tão a sério um caso tão excepcional, e, ao mesmo tempo, tão significativamente humano...tão expressivamente feminino...”
Ainda o próprio autor do estudo nos revela, nesta significativa citação, como aflorava o inconsciente coletivo veiculado por sua poesia. Vejamos:
“...mais tarde se revelará na sua poesia, como uma verdadeira intuição obsessiva e não o capricho literário que também é, o pós-sentimento de ter vivido em outros mundos, em outras vidas, em outros países: de ter sido não só quaisquer das figuras romanescas sonhadas pela fantasia dos poetas ou vitralizadas pela história e a lenda - princesas, infanta, monja - mas ainda árvore, flor, pedra, terra; senão nuvem, som, luz...”

Na penumbra do pórtico encantado
De Bugres, noutras eras, já vivi;
Vi os templos do Egito com Loti;
Lancei flores na Índia ao rio sagrado.


Mas José Régio, na mesma analise sobre Florbela, dá uma escorregada ao querer interpretar seu narcisismo como contradição de personalidade da poeta em relação à procura ou exaltação do seu amor. Utilizando certa forma pejorativa, mal percebe, esse crítico, o impressionante processo de expressão espontânea do feminino inspirador, que a poeta mulher faz surgir por imagens mal compreendidas quando conceituadas como narcisismo. Indo da incompreensão à censura, vejamos o que nos fala Régio a respeito:
“…Todavia não creio que em tais sonetos se exprima o singular de Florbela. Embora fazendo sonetos de amor até ao fim, e não obstante a feminilidade que já vimos dar tom ao seu narcisismo, lembremo-nos, continuemos a lembrar-nos que Florbela gosta demasiado de si mesma, comprazendo-se em cantar “os leves arabescos” do seu corpo, a sua “pele de âmbar” os seu “olhos garços”, sobretudo as suas mãos que tanto veste de imagens. Pormenor impressionante: O que em si própria mais parece agradar-lhe – as mãos e os olhos – é o que também mais canta no amante amado. Dir-se-ia que ainda nele se espelha e se procura. E sem dúvida poderemos pensar que, em vários de seus sonetos considerados de amor, ela é que é o verdadeiro motivo; e o pretenso amado um pretexto.Ora, narcisismo e egolatria não parecem que sejam muito favoráveis ao dom de amar. ”
Isto significa não entender que a verdadeira poesia e a procura de um algo muito poético sejam uma coisa só, e que a alma procura sentidos para encontrar-se quase sempre em contatos que lhe despertem a sensibilidade por intermédio do amor, pois é esse amor a energia erótica, através de uma intensa fabricação de libido, de dentro, que Florbela precisa desprender e captar ao mesmo tempo na consciência, para produzir sua obra. Seria uma pequena ilusão encontrá-la de forma permanente no sexo oposto, mas a incitação à possibilidade inicial da paixão leva a poeta a procurá-la nos homens, desiludindo-se, nos três casamentos desfeitos em apenas 15 anos. Sem esquecer que existe a necessidade de criar o pólo oposto para estabelecer a tensão necessária à criação, pois a energia nasce da relação dinâmica entres esses opostos.
Compreende-se o anúncio insistente da procura, e também as formas sinceras de imaginar tal encontro como formas de amor, ou na imagem do seu feminino, ou nas tentativas de ternura, inclusive em relação ao seu amado irmão. E isso é a poesia de Florbela, anunciação da insatisfação por não encontrar-se. No soneto seguinte podemos apreciar essa poesia:

EU
Eu sou a que no mundo anda perdida
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada... a dolorida...

Sombra de névoa tênue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...

Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber porque...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!

Florbela Espanca, em vida, conseguiu editar o Livro de Mágoas (1919) e o Livro de Sóror Saudade (1923), deixando inéditos Charneca em Flor e Relíquia, por não ter encontrado editor. As críticas em geral não acertaram esse compasso espiritual de Florbela, quando a analisam “...desligada de preocupações de conteúdo humanista ou social. Inserida em seu mundo pequeno burguês...(observação citada por Rolando Galvão). Uma analise insensível, por não levar em conta o mergulho da poeta na criação individual, pois, dessa forma conseguiria sua profunda inserção na comunidade, como de fato veio acontecer posteriormente. Florbela fez sua poesia em sonetos, pouco se preocupando com o estilo modernista, como já dissemos, porque a essência de seu fluxo poético encaixou-se melhor nessa forma (e, por acaso, não seria igualmente essa forma de cadência, ritmo e melodia a indicada por seu ativo imaginário do inconsciente?). Mesmo, nessa técnica escolhida, despreocupou-se com a formalidade do verso; precisava dizer urgentemente ao mundo o que borbulhava dentro dela.
No EU que transcrevemos na integra, vemos a alma que se derrama num caudal fazendo-a sofrer dolorosamente... por ser irmã do sonho...é sacrificada e dolorida. Ao não conseguir encontrar a expressão adequada no consciente das realidades de sua vida, o “...destino amargo, triste e forte a impele brutalmente para a morte...”, isto é, busca essa alma, supostamente verdadeira, fora do mundo real dos fatos objetivos, e dentro do sonho, o único que a poeta mais conhece e vive. Na sua realidade das coisas, sua figura não é vista e nem compreendida (chamam-me triste sem o ser). E ela própria não consegue identificar o porquê disso. No caso dela é um sofrimento real e não apenas um fingimento poético, com a conseqüente representação artística.
Esse sofrimento real leva à tragédia real, que mais tarde se apresentará no suicídio aos 36 anos. Se fosse fingido, o sofrimento desembocaria em arte representativa, tragédia que se realiza na obra estética do drama, através do símbolo. Florbela é poesia bruta, pura, como a explosão dos astros, e é por isso também extremamente vidente, ao perceber, desde seu mundo oculto um Alguém articulador (que vem de algum lugar obscuro?), manejando os mecanismos de seu emergir espontâneo. Alguém a provocar-lhe sede, mas que não lhe dá água de beber “...Alguém que veio ao mundo pra me ver e que nunca na vida me encontrou.”, visão extraordinária do inconsciente vivo, onde ela dialoga com o simbolo difuso, diríamos.
E notemos como tenta, antecipadamente, prever a cristalização desse encontro, um ir além do metafísico, num dos últimos sonetos de sua vida:

DEIXAI ENTRAR A MORTE
Deixai entrar a morte, a iluminada,
A que vem para mim, pra me levar,
Abri todas as portas par em par
Como asas a bater em revoada.

Que sou eu neste mundo? A deserdada,
A que prendeu nas mãos todo o luar,
A vida inteira, o sonho, a terra, o mar,
E que, ao abri-las não encontrou nada!

Ó Mãe! Ó minha Mãe, pra que nasceste?
Entre agonias e em dores tamanhas
Pra que foi, dize lá, que me trouxeste

Dentro de ti?...pra que eu tivesse sido
Somente o fruto das entranhas
Dum lírio que em má hora foi nascido!...

Mas antes dessa ida, Florbela tentou experimentar “... prender nas mãos todo o luar...”. E procurou-o no amor aos homens, mas achou o sexo brutal; ali não estava o luar, o erotismo em que procurava comover-se. Esse pólo extremo sempre existiria, com o intuito de provocar energia, mas todo pólo que predomina sobre o outro desequilibra o processo de criação. Florbela sempre que cedia à tentação de optar por um dos lados, estagnava o processo vital da criação de libido.

AMAR
Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui...Além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar!Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem dizer que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma primavera em cada vida:
É preciso canta-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder...pra me encontrar...

Florbela vivia à procura de sua alma interior, na beleza imaginada de seu feminino e na vivência de sua paixão interior; seu amor, que não se realizaria com os homens. 
Procurei o amor, que me mentiu,
Pedi à Vida mais do que ela dava;
Eterna sonhadora edificava
Meu castelo de luz que me caiu. (Inconstância)
....................................................

Quando se defrontava com o feminino de sua alma achava-se de uma beleza indescritível, não cabia dentro de sua própria formosura.

Eu tenho, Amor, a cinta esbelta e fina...
Pele doirada de alabastro antigo...
Frágeis mãos de madona florentina...
- Vamos correr e rir por entre o trigo – (Passeio no Campo)

Mas ao defrontar-se com a realidade, quase desconhecida e a ela desacostumada, exagerava em dizer que seu corpo era feio diante do espelho. Mesmo que não o fosse, a visão não correspondia a seu estado de sonho, cujo conceito do belo estava além da realidade.

Até agora eu não me conhecia.
Julgava que era Eu e eu não era
Aquela que em meus versos descrevera
Tão clara como a fonte e como o dia.

Mas que eu não era Eu não o sabia
E, mesmo que o soubesse, não o dissera
Olhos fitos em rútila quimera
Andava atrás de mim e não me via! (EU II)
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E ao final Florbela, frente ao dilema de ser ou não ser, terminava correndo para o refúgio da própria poesia, seu ser transcendente, que corresponderia à unidade desses dois contrários: o símbolo permanente de sua possível salvação.

SER POETA
Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede do Infinito!
Por elmo, as manhãs de ouro e de cetim
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te assim perdidamente
E seres alma e sangue e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente.

O sofrimento vinha dessa incompatibilidade entre o corpo real e o corpo da alma. Florbela precisaria de um meio termo, não como média, mas como síntese simbólica ou filosófica. Talvez a filosofia oriental fosse-lhe propícia naquele momento de domínio da incompreensão total, exercida sobre ela até pela cultura circundante. Pois, o meio em que se locomovia era fruto das máscaras do valor aparente, das conquistas violentas, da supervalorização física, a nostalgia dos feitos colonizadores, que em Portugal (sem excluir outros paises colonialistas) oprimia a alma de seus poetas profundos (veja-se Fernando Pessoa, morto por alcoolismo, ou mesmo Sá Carneiro, levado ao suicídio)
Em outra cultura mais espiritual, Florbela, provavelmente teria sobrevivido, conseguindo que sua psique encontrasse parcerias externas, na condução de seu erotismo ao caminho da harmonia, ou o equilíbrio entre a alma insaciável e o corpo real, encaixando-se conteúdo e forma, em sua vida como na poesia, misturando a imaginação com a vida real.
Desse País inexplicável, Florbela, consegue chegar a ponto de perceber o quanto a indecifrável e frustrada história “da pátria” se mistura com os enigmas de sua alma, que a levarão a sucumbir por não suportar mais esse desejo insaciável e desconhecido, não consumado. Vejamos no poema:

NOSTALGIA
Nesse País de lenda, que me encanta,
Ficaram meus brocados, que despi,
E as jóias que pelas aias reparti
Como outras rosas da Rainha Santa!

Tanta opala que eu tinha! Tanta, tanta!
Foi por lá que as semeei e que as perdi...
Mostrem-me esse País em que eu nasci!
Mostrem-me o Reino de que eu sou infanta!

Ó meu País de sonho e de ansiedade,
Não sei se esta quimera que me assombra,
É feita de mentira ou de verdade!

Quero voltar! Não sei por onde vim...
Ah! Não ser mais que a sombra duma sombra
Por entre tanta sombra igual a mim!

A poeta, ao refletir sobre essa trajetória, percebe seu sonho misturado a um vago sonho coletivo, que para ela foi “...um sonho alado erguido em horas de demência...”. Não há realidade palpável, onde possa firmar-se; não vem o Desejado e nem o Infante, duas figuras; a do seu desejo e a do desejo da imaginação da coletividade (através de uma máscara coletiva de feitos e heróis). Aquilo que seria o transcendente - sua própria poesia - já não encontrava meios psíquicos de faze-la viver, porque ela própria já não possuía mais recursos para sustentar-se na vida das imagens. Assim diz:

SONHO VAGO
Um sonho alado que nasceu um instante,
Erguido ao alto em horas de demência
Gotas de água que tombem em cadencia
Na minha alma, tristíssima, distante...

Onde está ele o Desejado? O Infante?
O que há de vir e amar-me em doida ardência?
O das horas de mágoa e penitencia ?
O Príncipe Encantado? O Eleito? O Amante?

E neste sonho eu já nem sei quem sou
O brando marulhar de um longo beijo
Que não chegou a dar-se e que passou...

Um fogo-fátuo rútilo, talvez...
E eu ando a procurar-te e já te vejo!
E tu já me encontras-te e não me vês!



Terra Sonâmbula - Mia Couto
Mia Couto é um inventor de palavras e um explorador de sonhos. Começo assim, directo, porque há que dizer o que tem de ser dito. O autor moçambicano é um dos mais lidos em Portugal mas apenas me chegou agora aos olhos, através do romance de 1992 Terra Sonâmbula. Futuros encontros aguardam-se, agora falemos deste livro.
Quem diz um livro diz dois, Terra Sonâmbula são duas histórias praticamente distintas contadas ao mesmo tempo. Num primeiro plano temos o menino Muidinga que não tem memória da sua infância, não sabe quem são os seus pais ou a sua família, e é tratado por Tuahir desde que se lembra, um velho que decidiu tomar o jovem debaixo da sua asa. Ao abandonarem um campo de refugiados, encontram num machibombo incendiado o seu novo poiso. Lá encontram também os cadernos de Kindzu que o menino lê todas as noites e onde o leitor vê o segundo plano da narração. A história de Kindzu é bem mais intrigante, jovem decide abandonar a sua terra para se tornar um Naparama, um guerreiro da paz, e acaba por se ver a buscar uma criança de uma mãe renegada, Farida. São histórias de busca, Tuahir só quer encontrar a paz, Muidinga quer encontrar o seu passado, Kindzu quer encontrar Gaspar, o filho de Farida. Tudo o que conseguem é encontrarem-se uns aos outros.
A leitura começa por se apresentar como difícil para um leitor novo no mundo de Mia Couto mas, simultaneamente, atraente. Como disse, é um inventor de palavras, palavras cativantes e sonoras que envolvem o leitor como num sonho, o que, aliás, se conjuga perfeitamente com a história. Isto para além de todos os regionalismos próprios do país africano. Ao nível linguístico, é um rebuçado. A espantosa qualidade de criação de palavras morfologicamente correctas é extasiante - se lhe imitasse o estilo, diria que Mia Couto faz brincacriação com as palavras - mas também extenuante. Para mim, pelo menos. A repetição constante de gerúndios inexistentes na língua portuguesa acaba por ter o efeito adverso ao pretendido, retira-lhes o significado. Ler Terra Sonâmbula pode ser uma experiência muito cansativa porque nos força, várias vezes por página, a reproduzir o processo que ocorreu na mente do autor para a criação de determinado vocábulo - o que não é necessariamente uma coisa má, antes pelo contrário, a literatura não é entretenimento, é literatura.
Falemos agora da narrativa. O conceito da história dentro da história, diga-se em verdade, não é novo mas não é isso que lhe retira mérito. No entanto, fica a sensação que Mia Couto não se propôs a escrever uma história dentro de outra, antes uma história ao lado de outra, a narrativa de Kindzu toma um papel muito maior que a saga de Tuahir e Muidinga. Foi, sem dúvida, aquilo que me pareceu menos conseguido. Dá a impressão que a história dos caminhantes começa com um grande fôlego, pelo meio resiste para se manter viva, e no fim tem um impulso mais ou menos repentino, por oposição aos cadernos de Kindzu que são um verdadeiro repositório de sonhos, imaginário e realidade. Pergunto-me se não funcionariam melhor como contos separados. A verdade é que mesmo com este pequeno senão, Terra Sonâmbula consegue ser um bom livro. Com mestria, mistura guerra e sonho, ilusão e paz, humanidade e sobrevivência, África e o resto do mundo. As tradições e superstições moçambicanas representam uma parte importante da trama e opõem-se à dura realidade de um país devastado pela morte. A mistura é de tal ordem que, a certo ponto, não se sabe se se sonha com a destruição ou com a vida, e a miséria é tão banal que o extraordinário é haver comida na mesa.
Terra Sonâmbula é, de muitas maneiras, um livro chocante. No entanto, o choque é atenuado pelo sonho e superstições africanas, para o leitor como para os viventes da narrativa. É um livro que nunca dorme, numa terra que tem medo de dormir, com personagens que, quando dormem, sonham com outros personagens que nunca dormem porque têm medo de dormir. É a realidade dentro de um sonho dentro da realidade de um sonho. Labiríntico, sem dúvida. Impressionante, definitivamente. Ficou-me, no entanto, um amargo de boca, talvez por levar expectativas diferentes ou demasiado altas, Terra Sonâmbula não me apresentou um Mia Couto como eu esperava conhecer. O que, diga-se, também não é necessariamente mau.
Referências Bibliográficas: Terra Sonâmbula, Mia Couto.

Alice Ruiz
Alice Ruiz começou a escrever contos com 9 anos de idade, e versos aos 16. Foi "poeta de gaveta" até os 26 anos, quando publicou, em revistas e jornais culturais, alguns poemas. Mas só lançou seu primeiro livro aos 34 anos.
Aos 22 anos casou com Paulo Leminski e pela primeira vez, mostrou a alguém o que escrevia. Surpreso, Leminski comentou que ela escrevia haikais, termo que até então Alice não conhecia. Mas encantou-se com a forma poética japonesa, passando então estudar com profundidade o haicai e seus poetas, tendo traduzido quatro livros de autores e autoras japonesas, nos anos 1980.
Teve três filhos com o poeta: Miguel Ângelo Leminski, Áurea Alice Leminski e Estrela Ruiz Leminski. Estrela também é uma grande poeta: acabou de lançar um livro, junto com o Yuuka de Alice: Cupido: Cuspido e Escarrado (ambos saíram pela Editora AMEOP, de Porto Alegre) - provando que, filha de duas feras, essa Estrela tem luz própria.
Alice publicou, até agora, 15 livros, entre poesia, traduções e uma história infantil, que você pode conhecer clicando em Bibliografia.
Compõe letras desde os 26 anos - a primeira parceria foi uma brincadeira com Leminski, que se chamou "Nóis Fumo" e só foi gravada em 2004, por Mário Gallera. A poeta tem mais de 50 músicas gravadas por parceiros e intérpretes. Está lançando, em 2005, seu primeiro CD, o Paralelas, em parceria com Alzira Espíndola, pela Duncan Discos, com as participações especialíssimas de Zélia Duncan e Arnaldo Antunes. Para conhecer essas gravações e os parceiros da poeta, dê uma olhadinha em Discografia!
Antes da publicação de seu primeiro livro, Navalhanaliga, em dezembro de 1980, já havia escrito textos feministas, no início dos anos 1970 e editado algumas revistas, além de textos publicitários e roteiros de histórias em quadrinhos. Alguns de seus primeiros poemas foram publicados somente em 1984, quando lançou Pelos Pêlos pela Brasiliense. Já ganhou vários prêmios, incluindo o Jabuti de Poesia, de 1989, pelo livro Vice Versos.
Já participou do projeto Arte Postal, pela Arte Pau Brasil; da Exposição Transcriar - Poemas em Vídeo Texto, no III Encontro de Semiótica, em 1985, SP; do Poesia em Out-Door, Arte na Rua II, SP, em 1984; Poesia em Out-Door, 100 anos da Av. Paulista, em 1991; da XVII Bienal, arte em Vídeo Texto e também integrou o júri de 8 encontros nacionais de haikai, em São Paulo.
As aulas de haikai são uma experiência única para quem já fez - Alice convence a gente que no fundo de cada um existe um poeta louco pra despertar, e descobrimos surpresos que sim, é possível!
Quer saber mais sobre Alice Ruiz? Então passeie pelas páginas do site - e depois não se esqueça de escrever pra ela, contando o que você descobriu aqui!

“do jeito que as coisas vão
até parecem felizes
comportando tanto impossível
nunca do jeito que são
coisas pelo contrário
pessoas perdem matizes
viram vultos sombras nadas
coisas quando serão?”



“mesmo que eu morra
dessa morte disforme
o esquecimento
não lamento
viver ou morrer
é o de menos
a vida inteira
pode ser
qualquer momento
ser feliz ou não
questão de talento
quanto ao resto
este poema
que não fiz
fica ao vento
mãos mais hábeis
inventem”



“apaixonada
apaixotudo
apaixoquase”


“primeiro verso do ano
é pra você
brisa que passa
deixando marca de brasa”


“assim que vi você
logo vi que ia dar coisa
coisa feita pra durar
batendo duro no peito
até eu acabar virando
alguma coisa
parecida com você
parecia ter saído
de alguma lembrança antiga
que eu nunca tinha vivido
alguma coisa perdida
que eu nunca tinha tido
alguma voz amiga
esquecida no meu ouvido
agora não tem mais jeito
carrego você no peito
poema na camiseta
com a tua assinatura
já nem sei se é você mesmo
ou se sou eu que virei
parte da tua leitura”



“minuto a minuto
quis um dia
todo azul
no teu dia
meu querer
quero crer
azulou
teu dia a dia
tudo
que podia

pequeno
tinha um pensamento
a selva
quando crescer
em algum lugar
na selva
corre grande
um pensamento”


“jamais amei um santo
nem cantei um hino
só quero morar
contígua a um sino
som que continua
desenhando templos”


“não vai dar tempo
de viver outra vida
posso perder o trem
pegar a viagem errada
ficar parada
não muda nada
também
pode nunca chegar
a passagem de volta
e meia vamos dar”

 

Cordéis e outros poemas, de Patativa do Assaré
Organizado por Gilmar de Carvalho, Cordéis e outros poemas é uma coletânea da obra de Antônio Gonçalves da Silva, o "Patativa do Assaré", publicada pela editora da Universidade Federal do Ceará. A diferença reside na inclusão de dois poemas - "Cante lá, que eu canto cá" e "A terra é naturá" -, a ausência do cordel "História de Aladim e a Lâmpada Maravilhosa" e dos textos introdutórios.
É um livro que tematiza a literatura popular, o universo dos livros vendidos em feiras pelo interior do Brasil.
"Cordel", etmologicamente, deriva de "cordão", mecanismo através do qual os poetas populares penduravam em feiras, seus livretos, para atingir o público consumidor.
Literatura de cordel é uma poesia folclórica e popular com raízes no Nordeste brasileiro. Consiste basicamente em longos poemas narrativos chamados "romances" ou "histórias", impressos em folhetim ou panfletos de 32 ou, raramente, 64 páginas, que falam de amores, sofrimentos ou aventuras, num discurso heróico de ficção.
Em Cordéis e outros poemas, podemos observar textos de natureza dissertativa, reflexiva, ampliando o conceito tradicional que diz que "cordel é poema em forma de narração". Isso mostra a versatilidade de Patativa do Assaré.
O autor muitas vezes reflete, analisa, discute acerca das dificuldades de vida do homem sertanejo.
Seus temas também são ampliados, variados, indo além do conceito clássico de que "cordel fala de amor, sofirmento ou aventura". Patativa, com sua profunda consciência social, também tematizou a desigualdade do Nordeste, os conflitos de terra, os problemas envolvendo o latifúndio, a profunda religiosidade e o misticismo do homem simples do sertão do Brasil.
Portanto, os aspectos temáticos da obra são: a pobreza e o sofrimento do sertanejo, a felicidade e o infortúnio, o bem e o mal, o sertão e a cidade, o latifúndio e o agregado, o retirante, o social e o político, a ética e a honestidade, o perdão e a grandeza, a fé em Deus e na religião (Patativa sempre, como todo sertanejo, foi um homem de muita fé).
Patativa sempre viu a necessidade de justiça e de igualdade. Foi um poeta social voltado para a observação do universo e mazelas do homem simples.
Ainda a dimensão o sofrimento e do heroismo, o êxodo rural e a saudade da terra natal, a preservação da tradição, a valorização da natureza, o agreste, o semi-árido, são temas que sempre foram cantados em versos por Patativa do Assaré.
A obra Cordéis e outros poemas se constitui de 15 cordéis e 2 poemas onde, do ponto de vista estrutural, predominam as sextilhas e as décimas, ambas com versos de 7 sílabas poéticas (redondilha maior).

Observações:
Sextilhas = 6 versos que apresentam rimas nos versos pares.
Redondilha maior = Versos de 7 sílabas poéticas.
Décimas = estrofe com 10 versos.


Fragmento do poema A TERRA É NATURÁ
Esta terra é como o Só
Que nace todos os dia
Briando o grande, o menó
E tudo que a terra cria.
O só quilarêa os monte,
Tombém as água das fonte,
Com a sua luz amiga,
Potrege, no mesmo instante,
Do grandaião elefante
A pequenina formiga.

Esta terra é como a chuva,
Que vai da praia a campina,
Móia a casada, a viúva,
A véia, a moça, a menina.
Quando sangra o nevuêro,
Pra conquistá o aguacêro,
Ninguém vai fazê fuxico,
Pois a chuva tudo cobre,
Móia a tapera do pobre
E a grande casa do rico.

Esta terra é como a lua,
Este foco prateado
Que é do campo até a rua,
A lampa dos namorado;
Mas, mesmo ao véio cacundo,
Já com ar de moribundo
Sem amô, sem vaidade,
Esta lua cô de prata
Não lhe dêxa de sê grata;
Lhe manda quilaridade.

Esta terra é como o vento,
O vento que, por capricho
Assopra, às vez, um momento,
Brando, fazendo cuchicho.
Ôtras vez, vira o capêta,
Vai fazendo piruêta,
Roncando com desatino,
Levando tudo de móio
Jogando arguêro nos óio
Do grande e do pequenino.

Se o orguiôso podesse
Com seu rancô desmedido,
Tarvez até já tivesse
Este vento repartido,
Ficando com a viração
Dando ao pobre o furacão;
Pois sei que ele tem vontade
E acha mesmo que percisa
Gozá de frescô da brisa,
Dando ao pobre a tempestade.

Pois o vento, o só, a lua,
A chuva e a terra também,
Tudo é coisa minha e sua,
Seu dotô conhece bem.
Pra se sabê disso tudo
Ninguém precisa de istudo;
Eu, sem escrevê nem lê,
Conheço desta verdade,
Seu dotô, tenha bondade
De uvi o que vô dizê.

Não invejo o seu tesôro,
Sua mala de dinhêro
A sua prata, o seu ôro
O seu boi, o seu carnêro
Seu repôso, seu recreio,
Seu bom carro de passeio,
Sua casa de morá
E a sua loja surtida,
O que quero nesta vida
É terra pra trabaiá.

Iscute o que tô dizendo,
Seu dotô, seu coroné:
De fome tão padecendo
Meus fio e minha muié.
Sem briga, questão nem guerra,
Meça desta grande terra
Umas tarefa pra eu!
Tenha pena do agregado
Não me dêxe deserdado
Daquilo que Deus me deu.

 

Bom vestibular!

Professor José Roberto Duarte