Vesibular da URCA 2013.2 - Resumo das obras indicadas

 

Fuga pela Claraboia

Entrevista com o professor-poeta Francisco de Freitas Leite.

Freitas, como um de seus livros vai cair no vestibular da URCA, queríamos saber:

1) Qual seu estilo?

Em minha poesia como um todo (considerados os quatro livros publicados e os inéditos), não consigo definir um estilo que a caracterize definitivamente (talvez a falta de um estilo determinado seja sua marca) e prefiro vê-la como poesia típica do ecletismo pós-moderno, mas um outro (um crítico vendo-a com o discernimento próprio do que olha de fora) possa-a melhor identificar nela um estilo que eu, com autor (de tão de dentro que a observo), não consigo enxergar.

Em Fuga pela claraboia em particular, (diferentemente de Nacos, cujo estilo formal de poesia visual é a marca principal) o estilo da poesia versificada sem rima e sem métrica de gosto mais jovial ocorre predominantemente. Não há uma temática rígida a não ser a inquietação poética do olhar inventivo do poeta no cotidiano das gentes.

 

2) Sua inspiração?

Em fuga pela claraboia aparecem poemas com diversas temáticas e de motivos diversos. Não há uma inspiração única (como o sertão reinventado de Ave, sertão!), mas uma coleção de poemas reunidos pelo pretenso desejo de constituir um livro leve e de leitura ao gosto de um público jovem.

 

3) Você segue alguma corrente?

Não. Correntes prendem e, como já dizia Belchior, “não vou eu mesmo atar minha mão”... prefiro estar à vontade para seguir aonde levar a poesia.

 

4) Quais são as principais características notadas em seus poemas ou escritos?

Falando exclusivamente de Fuga pela claraboia, quanto à forma a principal característica é a não adoção de forma fixas de poemas e o, como já dito, o uso de versos sem rima e sem métrica, mas organizados conforme o ritmo ou em função da expressividade poética; quanto ao conteúdo, é caro para mim o ser humano em seu interior conflituoso e em seu exterior processual.

 

5) Como poderíamos analisá-los?

Analisar poesia é tarefa complexa, porque poesia é mais pra ser sentida do que pra ser entendida ou compreendida. Isso quer dizer que, nessa tarefa, entram componentes individuais, vivenciais, mas também conhecimentos estéticos... ou seja, para se analisar poesia, tem-se de ter “leituras” que vão além das leituras poéticas... de qualquer forma, indico, como exemplos de análises e estudos da minha poesia, os prefácios dos quatro livros (em Fuga pela claraboia, o prefácio é de Íris Tavares), uma monografia sobre minha produção poética de autoria de Ana Cristina S. Prado e um artigo do professor Flávio Queiróz publicado no livro “As veredas da pesquisa em Letras: ensaios críticos e teóricos”.

 

 

Moreira Campos, Dizem que os cães veem coisas. Ed. UFC

José Maria Moreira Campos (Senador Pompeu, 1914 – Fortaleza, 1994)), ingressou na Faculdade de Direito do Ceará, bacharelando-se em 1946. Licenciou-se em Letras Neolatinas em 1967, na antiga Faculdade Católica de Filosofia do Ceará. Exerceu o magistério na Universidade Federal do Ceará, Curso de Letras, como titular de Literatura Portuguesa. Integrante do Grupo Clã. Pertenceu à Academia Cearense de Letras. Deixou as seguintes coleções: Vidas Marginais (1949), Portas Fechadas (1957), distinguido com o Prêmio Artur de Azevedo, do Instituto Nacional do Livro, As Vozes do Morto (1963), O Puxador de Terço (1969), Os Doze Parafusos (1978), A Grande Mosca no Copo de Leite (1985) e Dizem que os Cães Vêem Coisas (1987). Seus Contos Escolhidos tiveram três edições, Contos foram editados em 1978 e Contos – Obra Completa se publicaram, em dois volumes, em 1996, pela Editora Maltese, São Paulo, com organização de Natércia Campos. Tem também um livro de poemas, Momentos (1976). Participou de diversas antologias nacionais. Algumas de suas peças ficcionais foram traduzidas para o inglês, o francês, o italiano, o espanhol, o alemão.

Sua obra está estudada em importantes livros, como o de José Lemos Monteiro, intitulado O Discurso Literário de Moreira Campos, o de Batista de Lima, Moreira Campos: A Escritura da Ordem e da Desordem, e outros mais abrangentes, como Situações da Ficção Brasileira, de Fausto Cunha; 22 Diálogos Sobre o Conto Brasileiro Atual, de Temístocles Linhares; e A Força da Ficção, de Hélio Pólvora. Em jornais e revistas se estamparam quase uma centena de artigos e ensaios sobre os seus livros.

Textos:

Profanação

A cidade repousava na paz dormente da tarde. Redemoinhos. Carneiros que ruminavam à sombra da igreja. Outros animais pastavam na praça principal, que o mato ia farto naquele fim de águas. De repente, o relincho do jumento cortou o espaço, vibrante, sincopado, sacudindo concentrações. Jumento só relincha em hora certa. À larga sombra do oitão na casa da esquina, Seu Manduca, farmacêutico, concluiu o lance no tabuleiro do gamão e consultou o relógio: vinte para as cinco. Inesperado! Um erro qualquer de cálculo. Novo relincho, houve tropel de cascos. Já o jumento se desembainhara: lança em riste, reluzente, sugestão de um bacamarte boca-de-sino. O beiço superior dobrado, em cheiro de sexo ou de cio, um fauno. A jumenta, nova, um mimo de ancas, talvez ainda intocada, atirou-lhe logo uns dois pares de coices na queixada, de que ele se livrava com dignidade e firmeza. Insistiu em mordê-la no pescoço. Novos coices, toda uma beleza de mocidade. Qualquer coisa, pela própria violência e rápidas entregas e negaças, a lembrar a festa necessária do sexo. A arma poderosa erguia-se lenta contra o peito do próprio jumento, como que se acamando, em pancadas repetidas, mola, alavanca para grandes pesos. Perseguia a fêmea, tentou cavalgá-la, escorregou. D. Esmerina, da janela de casa, a vista curta, apertava as pálpebras, num esforço de verificação. Pressentiu coisas. Mandou que a neta entrasse, menina de doze anos. Sinha Terta parou no meio da praça, equilibrando na cabeça a trouxa de roupa, seduzida, esquecida de tudo. No bilhar de Duca, os homens abandonaram o jogo e, do alto da calçada, bateram palmas:

– Eita, cabra macho!

Mais coices. A jumenta apressava o passo em trote gracioso, e o fauno atrás. Ela entrou por uma das portas laterais da igreja, e ele também, o beiço superior mais dobrado que nunca. Quebraram bancos, o velho confessionário foi deslocado. Alexandre Sacristão, que espanava o altar e os santos, ficou com o espanador parado no ar. Padre Rolim tangia os brutos com a batina (porque esta estória é antiga):

– Xô, demônios!

Tudo se consumou na sacristia, perto da grande mesa coberta com a toalha de gorgorão, onde aos domingos se realizavam as conferências da Sociedade São Vicente de Paulo e se pagava o óbolo.

A beata Inacinha assistira à cena por trás da cortina, perplexa e hipnotizada. Seguira detalhes: a penetração profunda, que lhe dera estremecimentos, a contração da fêmea, os movimentos rápidos. A própria Inacinha sentira um dilaceramento íntimo, como se sangrasse, desejo também de entrega:

– Oh!

Todos siderados: Padre Rolim, Inacinha, Alexandre Sacristão, as outras beatas que chegavam. Padre Rolim se recompôs logo e, afinal, tangeu os dois. Já muitos curiosos no oitão da igreja, um deles vindo do bilhar e ainda esfregando o giz na ponteira do taco. Padre Rolim insistia:

– Absurdo!

Virou-se para Alexandre Sacristão.

– De quem é esse jumento?

Alexandre não sabia. A beata Inacinha conhecia o dono da jumenta:

– É Seu Dedé. Lá da beira do rio.

Padre Rolim, desabotoado, abanava-se com a gola da própria batina:

– O que está faltando é um homem na Prefeitura. Irresponsáveis! Um bando de animais soltos!

Mais curiosos que chegavam. Por fim, foram-se afastando. Alexandre Sacristão veio com o chumaço de estopa e o balde de água para a limpeza do piso da sacristia, onde restava a grande sobra de sêmen e de onde subia um cheiro de sexo, que dilatava as narinas, as de Inacinha ainda mais inflamadas. Padre Rolim decretou que era profanação. Não que fosse preciso interditar a igreja, cerrar portas. Mas pelo menos benzer a sacristia. Apanhou o hissope, aspergiu água benta, disse orações, acompanhado pelas beatas e por Alexandre Sacristão, que terminou por repor no local a grande mesa com toalha de gorgorão, que também fora deslocada. A notícia correu a cidade: Padre Rolim dissera que tinha havido profanação. Benzera a sacristia. Na porta de casa, Seu Apolinário, lido e surdo, levava a mão em concha à orelha cabeluda, com certa ironia.

– Tinha havido o quê?

– Profanação.

– Ah, sim.

A beata Inacinha sentia agora dificuldade de concentrar-se nas orações. A imagem em tanga de São Sebastião no oratório de casa, as chagas, as setas profundas, o sangue, tudo se confundia com a penetração enérgica, dilacerante, quente, morna. Um verdadeiro demônio, como dissera Padre Rolim, até pelo retesado das patas, quase em pé, os cascos, aquele espeto enorme. Inacinha voltava às contas do terço. Na manhã do outro dia, os soldados e os presos de confiança na calçada da cadeia, divertidos, tentavam identificar o jumento, que pastava perto, junto à cerca de arame farpado, de mistura com outros animais. Alguém o apontou. Lá estava ele: moço, inteiro, forte no sopro das narinas. Tosava o mato e erguia a cabeça, altivo, enquanto o rabo tangia varejeiras. Seu Dedé, lá da beira do rio, já viera recolher a jumenta. A cidade voltou à tranqüilidade de sempre: à tarde, os carneiros ruminavam à sombra da igreja.

 

 

A carta

Ele está vindo à Capital duas vezes por mês para prestar contas das obras da empresa. Traz notícias, o pedido de encomenda ou carta do amigo para a noiva (ele e o amigo estudaram juntos no colégio e ocupam agora o mesmo quarto na pensão). Buzina (aquele som de buzina já conhecido e esperado) em frente ao portão da noiva. Ela dá toque rápido aos cabelos em frente ao espelho, aligeira os passos, cintura reduzida, pernas bem-feitas. Conversa com ele debruçada na porta do automóvel, protegendo o decote na alvura da pele. A mãe dela às vezes aparece para notícias do futuro genro, já quase um filho, o casamento marcado para dezembro. Ele desce do automóvel para a xícara de café em pé na sala. Bate o cigarro contra a unha polida, e a mão longa (o anel de engenheiro) protege com elegância a chama do isqueiro.

As notícias que traz do amigo são quase sempre as mesmas. Ótimo de saúde. Continua a trabalhar muito no banco. O extraordinário aos sábados. Por último, a notícia boa da promoção que teve e do aumento concedido. Ele chega à conclusão, rindo, de que o casamento poderá ser apressado. A velha ri, e a filha também, girando no dedo a aliança do noivado.

Ao retornar na Segunda-feira pela manhã, novamente buzina em frente à casa, para notícia dela ou carta, encomenda que tenha. Ela já o espera. Talvez inquieta, porque volta a olhar pela janela do quarto, afastando a cortina. De passagem, ajeita na penteadeira, sem necessidade, o vaporizador de água-de-colônia ou estala os dedos. Anda nervosa. Aborrece-se com a mãe. Ela tem mania de mandar pacotinhos de doce para o futuro genro. Porque era aniversário dele, aquele bolo difícil e ridículo, que o outro teve de ajeitar com muito cuidado no porta-malas, limpando depois os dedos no lenço de que se evolava o perfume.

Zanga-se:

- Acho isso absurdo.

A velha se aborrece também. Entende que não há abuso nenhum, se os dois são amigos, e o moço sempre tão atencioso:

- Absurda é você.

Numa dessas viagens o amigo o acompanhou. Quando ela viu o noivo dentro do carro, surpreendeu-se:

- Ah, você?

Ele desceu com a pasta na mão. Beijou-a no rosto. Passou-lhe o braço sobre os ombros e a estreitou. O outro tinha pressa de chegar em casa. A mãe fica sempre aflita, pensando em desastre.

- Tchau.

- Tchau.

Da última vez em que parou o carro ali, disse-lhe que trouxera carta do noivo. Esticou-se para apanhá-la no porta-luvas. Ela pousou-lhe a mão no braço com uma pergunta que o desviou do propósito. Conversava com a graça de sempre. Aquele jeito delicioso de arranjar os cabelos atrás da orelha. Ria. Movimentava-se na calçada sob a luz do poste. Quis descansar o corpo contra o carro. Ele lhe disse que poderia sujar o vestido por causa da poeira, e voltou à elegância do cigarro e do isqueiro. Ela indagava se aquelas viagens não o cansavam. Dizia que não. A  estrada era boa, asfaltada, e ele tinha como companhia os próprios pensamentos. Ela quis saber que pensamentos eram esses.

- Ah, bem! Isso é mistério.

Riam muito.

Despediram-se.

Quando ele chegou em casa e buzinou para que a empregada abrisse o portão, lembrou-se de que não lhe entregara a carta, nem ela a reclamara. Teve um gesto de contrariedade: bateu o punho contra a mão. A mãe, que lhe vinha sempre ao encontro, indagou:

- Alguma preocupação, meu filho?

- Não, não. Nada.

 

 

Irmã Cibele e a menina

Quando a mãe dos meninos morreu, Dona Madalena, que é espírita e mulher de muito prestígio (à tarde, toma o automóvel do marido, dirigido pelo motorista, e sai em visita aos seus pobres e doentes) recolheu as crianças e as distribuiu como pôde. Falou com Irmã Cola para ficar com a menina, que, por sinal, não é tão menina: tem as pernas bem-feitas e os cabelos bonitos, elogiados pela empregada da casa, ainda na hora em que ela saía:

– São lindos os cabelos dela!

Dona Madalena chegou ao colégio na hora em que as freiras merendavam na mesa grande da área de travejamento forte. Irmã Cola se levantou, outras freiras se levantaram. Dona Madalena recusou a fatia de bolo. Queria apenas a xícara de café com pouco açúcar, que ela indicava com os dois dedos. Os pombos desciam do pombal e vinham arrulhar no parapeito da área. Irmã Cibele, a recente, atirava-lhes miolo de pão, que antes arredondava muito entre os dedos. O pavilhão das órfãs, para onde ia a menina, fica no fundo do longo corredor, que se projeta sob a sucessão de arcadas e tem como piso lajes antigas comidas por muitos passos. O pavimento repousava escuro e tranquilo, que era domingo: as máquinas de costura fechadas, as cadeiras vazias, as peças de linho arranjadas sobre a mesa. Apenas algumas órfãs se aproximaram interessadas pela novidade da companheira. Examinavam-na. Ela olhava o forro, voltava a descansar na outra perna e insistia em estalar os dedos, para o que Irmã Cola chamou a atenção. A maleta de tábua da menina, comprada no mercado por Dona Madalena, foi mais uma vez colocada a um canto no largo dormitório. Dona Madalena sentiu necessidade de reforçar conselhos. Ela ia ser feliz, e útil. Aprender um ofício. Agora falava mais para Irmã Cola:

– Crochê, que tanto serve para encher a vida da gente.

Irmã Cola ria e confirmava. Pousou a mão sobre os cabelos compridos da menina:

– Ela vai se dar bem.

A menina quis marejar os olhos, e mordeu o lábio.

Quem se empolgou também com os cabelos da menina foi Irmã Cibele, que é recente e atira miolo de pão para os pombos. Alisa-os com as próprias mãos, enquanto a menina se aplica no bastidor, o que é inusitado. As outras órfãs deixam cair os trabalhos no colo mais ou menos surpresas, uma delas de boca aberta, a agulha suspensa no ar. Irmã Cibele teve a idéia do laço de fita, para compor o rabo-de-cavalo, que apreciou recuando:

– Fica lindo!

– Cavilação...

Quem falou assim, de passagem, foi Irmã Teresa. Irmã Cibele pareceu perturbar-se muito. Baixou os olhos: ela tem esse jeito de os escorregar pelo chão. Enfiou as mãos muito alvas e finas nos bolsos largos do hábito, apressou-se, sem muita necessidade, em atender à velha milionária de lorgnon, com automóvel parado sob o castanheiro no portão do orfanato, que viera encomendar enxoval para o casamento da neta. Irmã Cibele explicava:

– São aplicações muito bonitas.

A velha milionária estava mais interessada na toalha de labirinto. Irmã Cibele ainda olhava de lado, disfarçadamente, sentindo os passos de Irmã Teresa, que continuava o seu passeio de inspeção. Irmã Teresa é pesadona, de tornozelos inchados, meias grossas e velhas sandálias, por causa dos joanetes. Toma de manhã o seu remédio para o artritismo, servindo-se do copo de água no filtro, e examina os dedos doloridos e tortos à luz do sol na arcada da área. O que mais lamenta é já não poder dar um ponto de crochê. Não tem tato, energia nos dedos, a agulha cai e ela sente dificuldade em encontrá-la debaixo da cadeira de balanço. Superintende o orfanato. Irmã Cola tem mais a direção do colégio e o cuidado da capela: é muito contrita nos seus votos. Irmã Teresa vigia, superintende:

– Cavilação... muita cavilação.

Embirra com a simpatia de Irmã Cibele pela menina, aquele agarradio tolo, que nem é próprio de uma freira. Ainda assim, Irmã Cibele encontra meio de pegar a menina pela mão e correr com ela até o jardim, que é outra paixão de Irmã Cola: tem verdadeira loucura pelo canteiro de rosas e se contraria com as formigas. Ela própria, Irmã Cola, está ali na manhã de domingo e indica da calçada do pátio as plantinhas que ela quer que as duas mudem:

– Lá... perto da roseira.

As mãos da menina estão sujas de terra. Irmã Cibele tem a barra do hábito umedecida pela grama. Sacode-o na calçada, batendo com os pés. As velhas, que balançam sempre as cabeças e se xingam, continuam a aguação dos outros canteiros com os pesados aguadores. Irmã Cola já se afastou, e Irmã Teresa apareceu sob a arcada, no seu jeito meio míope de cerrar as pálpebras por trás dos óculos, como se contemplasse o telheiro em frente, onde os pombos voltam a arrulhar.

Vigia.

Tudo se deu com a cumplicidade da tarde. O sino da capela já chamara para o terço. As mesmas máquinas de costura fechadas no pavilhão do orfanato, sobras de pano e fios pelo chão, as peças de linho ordenadas sobre a mesa. Irmã Cibele alcançou a menina no corredor do dormitório, depois de ainda consultar pela porta onde há a cortina. Estava muito em cima da menina, e sem palavras, que foram articuladas num sopro.

– Seus seios estão ficando lindos...

A menina propriamente não se surpreendeu. Teve receio, porque também olhou para os lados, para a porta da cortina. Tremia. Irmã Cibele também tremia e ofegava, as narinas acesas. Quis ver-lhe os seios, e ela mesma os procurava, as mãos muito ágeis. Perdia a cabeça. Beijou-os, e agora os sugava, babando-se e repetindo incoerências:

– Ahnn!

A sensação da menina foi de cócegas. Quis encolher-se. A excitação começou a empolgá-la, levantava-a nas pontas dos pés: a língua de Irmã Cibele era ativa e morna, os dentes mordiam com muita delicadeza, quase roíam. Um rumor qualquer? Irmã Cibele recompôs a menina, compôs-se a ela mesma e marchou rápida pelo corredor em direção à capela, os olhos baixos, naquele jeito seu de os escorregar pelo chão.

A menina meteu-se pelo dormitório. Está sentada na beira da cama e rói a unha. Os pensamentos são contraditórios. Sente-se como que esvaziada, lassa. Lembra-se distantemente de Dona Madalena, que viu pela última vez na festa de bodas de prata de Irmã Cola. Interfere a figura de Irmã Teresa. Talvez procure sentar-se junto dela com o bastidor. Nada é certo, há incoerências. Persiste a sensação dos dentes nos mamilos, que ela tenta mais uma vez desfazer com a mão, a blusa ainda úmida pela saliva de Irmã Cibele.

(Moreira Campos, Dizem que os cães veem coisas. Ed. UFC)

 

 

 

Matozinho vai à Guerra, de José Flávio Vieira

O livro “Matozinho vai à Guerra”, do escritor cratense José Flávio Vieira, narra em mais de 70 textos bem humorados a chegada da modernidade numa cidadezinha do interior do Nordeste. Com prefácio de Batista de Lima, o livro mostra que o povo nordestino é capaz de rir da sua própria desgraça e tecer a colcha de retalhos de sua felicidade com os delicados fios das suas vicissitude.

Semana Santa. E diante de muitas encenações da "paixão", lembro de uma em que o fundador de nossa cidade, Padim Ciço, assume papel fundamental no drama. Para muitos, o Pe. Cícero é o Santo maior de suas devoções e que traz para Juazeiro do Norte milhares de fiéis todos os anos em suas romarias. Nesse espetáculo, o próprio Jesus recorre ao nosso santo padre, no clímax do enredo, para lhe pedir ajuda.

Leia um trecho da obra. Fonte:oberronet.blogspot.com

O episódio se passou aqui pertinho, em "Matozinho", e quem conta o acontecido é o escritor J. Flávio Vieira em seu livro Matozinho vai à guerra.

Leia esse episódio:

Paixão de Cristo

Há controvérsias em Matozinho, mas parece que se deve à iniciativa de D. Carlina a ideia revolucionária. Enfurnada nas "Filhas de Maria", já entrada nos anos, viúva de um dos maiores paus-d´água da Vila, Carlina transpirava santidade por todos os poros. Um dia já tivera vida menos regrada, desfrutara uma difícil vida fácil, lá pras bandas da "Rua do Cacete no Lombo" em Bertioga, até que fora resgatada da zona por Zé Quequéu que, apaixonado, a tomou por esposa. Tirado o luto, Carlina voltouse à religião, pregava abstinência de todos os vícios e comentava, com ares críticos, os desvios dos matozenses mais libertinos. Como todo puritano, já esquecera que o caminho da virtude muitas vezes vem das veredas da perdição.

É provável, pois, que a ideia tenha vindo da neo-virtuosa Carlina. Reuniu a "Associação Comunitária do Sítio Pau Dentro" e propôs a encenação de uma "Paixão de Cristo" na Semana Santa que se já aproximava. Os argumentos pareciam fortes: o evento divulgaria a Associação e o Sítio e facilitaria a negociação das demandas, junto à prefeitura. Além do mais seria uma oportunidade, frisou Carlina com olhos piedosos, de mostrar a toda a Vila o grande poderio artístico do "Pau Dentro". Aprovada pela maioria dos presentes a proposta, o povo caiu em campo, com fins de encontrar meios e subsídios para bancar a produção. A prefeitura, como sempre - em Matozinho não é diferente - prometeu mundos e fundos, mas cozinhou, cozinhou e na última hora bateu catolé. A comissão arrecadou algumas poucas peças no comércio local e algum dinheiro dos coronéis mais abastados, usado na compra de vinho, sob a alegativa que todo elenco precisava ir avinhado. Quando D. Carlina protestou: "Álcool, na Via Sacra, de jeito nenhum!" Bedeu, o presidente da Associação, lembrou que apenas estavam seguindo a Bíblia, tanto não era pecado que Cristo tinha transformado água em vinho nas Bodas de Caná.

A parte mais conturbada da produção, no entanto, não podia ser outra, senão, a escolha do elenco. Havia candidatos demais para Cristo, São José e Nossa Senhora e de menos para Centurião, soldados romanos, bom e mau ladrão e figurantes. A primeira tentativa de divisão terminou por uma briga de proporções bíblicas envolvendo - pasmem vocês - santos, Pilatos, Cristos, Marias Madalenas, Josés de Arimatéia, Verônicas. Polícia chamada, aberto inquérito na delegacia, o soldado Severo fechou questão: vamos resolver tudo agora, por sorteio, para acabar o cu de boi! A decisão não podia ser mais salomônica. Claro que mesmo Salomão deve ter entendido que toda solução cria outros problemas paralelos, muitas vezes mais sérios que o original pretensamente resolvido. O Cristo vitorioso, "Zabelê", um chapeado de feira, tinha pouco a ver, fisicamente, com o Filho do Homem, era tamborete de samba, gorducho e cambota. "Zabé de Luca", amancebo de um soldado da polícia, recebeu a dificílima missão de encarnar Nossa Senhora. Garibaldo do Carvão recebeu a tarefa de lavar as mãos, como Pilatos. Gigi Marreta, quebrador de pedra, encenaria o Centurião e pelo rolo dos braços, previa-se que Cristo levaria tanta peia no percurso que não necessitaria ser crucificado: morreria antes! Dois Filhos do Santíssimo foram sorteados para bom e mau ladrão, desfigurando, um pouco, a herança do Pai.

Fechada a questão sob força de cassetete e ameaça de xilindró, passou-se à parte de figurino, não menos complicada. Nossa Senhora enfronhou-se num vestido de chita vermelha, pouco condizente com o luto de mãe. Maria Madalena usava um vestido velho de noiva que já fora longo na dona, mas na discípula, muito mais alta, ficou pegando marreca, tipo minissaia. São José cobria-se com uma colcha de Chenile puída, aberta no meio com um buraco grande, por onde o santo enfiou o pescoço e deixou cair o pano. Pilatos envergava um saiote que não era, nada mais nada menos, que uma saia de farda do glorioso Colégio Estadual Godofredo Freixeiras de Matozinho. Complementando a indumentária, uma toalha de rosto encarnada, enrolada, em diagonal, do pescoço ao vazio e, na cabeça, um galho de mufumbo em feitio de louros. O Cristo carregando sua cruz pesadíssima de braúna, vestia-se, apenas com um fraldão mal-engembrado feito com caminho de mesa e amarrado na cintura por um torçal amarelo, arrancado das beiradas de uma cortina. Na cabeça uma coroa de espinhos de macaúba e o corpo todo untado de uma mistura de azeite de coco, k-suco de uva e colorau, em grandes prastadas.

 

Turma do Litviva

Na Sexta-Feira Santa, depois de devorar seis tonéis grandes de Vinho São Francisco, o cortejo saiu percorrendo os três quilômetros que separavam o "Pau Dentro" de Matozinho. Uma grande assistência se foi formando com jeito de procissão. Chegando à Vila, o Cristo já vinha estafadíssimo de tanto peso de braúna e tanta lamborada no lombo. As pernas cambotas de Zabelê já pareciam quase um círculo perfeito e ainda tinham mais dois quilômetros para lombar, de subida íngreme, até a Serra dos Carneiros, lugar escolhido para Gólgota. Alguns problemas terminaram por acontecer, coisa não de todo incomum em superproduções. O bom e mau ladrões capotaram antes de chegar a Matozinho com os motores encharcados de vinho. São José, piedosíssimo, já na cidade, deu uma topada numa pedra, que arrancou o chamboque do dedão e, perdeu todas as veias da santidade, não resistiu e gritou, para o desespero de Carlina:

- Puta que Pariu!

Ao chegar na cidade, tiveram que trocar o chicote de couro que o centurião carregava, por um cordão de enganador, sob pena do Cristo, simplesmente, não resistir. Na subida da Serra, alguém comentou em voz alta:

- Meu Deus, que sofrimento! O peso da cruz é tanto que as pernas de Cristo já envergaram e parecem até um bodoque!

Chegando ao momento crucial da Paixão, no alto da Serra dos Carneiros, na beirada de um barranco, os soldados deitaram a cruz e amarraram o Cristo. Os pés, pra juntar aqueles arcos, já foi um problema. Ataram-nos com umas cordinhas finas que tinham tirado do armador da casa de Carlina. As mãos, no entanto, tiveram que atar à cruz com umas embiras, por falta de corda. Depois, cavaram o chão e fincaram-na, com o Cristo semimorto, amarrado lá em cima.A turba,embaixo, aguardava junto com todo o cortejo artístico, ao ápice do espetáculo. O momento em que o Filho do Pai gritaria aquelas palavras em grego:

- "Eli, Eli, lemá sabactâni!" Pai, ó Pai, por que me abandonastes?

Aos poucos, o Cristo, encarnado em Zabelê, começou a se contorcer, mais do que se poderia esperar. É que formigas de roça, atraídas pelo açúcar do k-suco, subiram pelas canelas do profeta e começaram a picar mesmo ali por baixo do fraldão divino. Antes de gritar as palavras derradeiras, as contorções aumentaram, num realismo nunca visto, como se se tratasse de uma convulsão. De repente, no bole-bole, as embiras que atavam as mãos do Messias se quebraram. Com os pés amarrados, o povo o viu despencar para o chão, numa queda fenomenal, enquanto, do alto de todo o seu poderio, pedia uma ajuda totalmente inusitada:

- Valei-me, Meu Padim Ciço!

 

 

 

 

Clepsidra, de Camilo Pessanha

Em Clepsidra, Camilo Pessanha distancia-se de uma situação concreta e pessoal, e sua poesia é pura abstração.

Clepsidra, título simbólico, que se refere a um instrumento de medição do tempo dado na Grécia aos oradores, instrumento do tipo da ampulheta, mas no qual corria água. Foneticamente o título lembra igualmente "hidra", o monstro devorador. O título aponta, assim, para a fragilidade da vida e da condição humana, para o fluir inexorável do tempo, que não deixa que nada se fixe na retina (poema Imagens que passais pela retina). Ora são estes os grandes temas da obra: a efemeridade de tudo quanto passa, a perda, a inutilidade do que se faz ou vive.

Intimamente relacionado com estes temas estão o da desistência e soçobramento, como sentimentos; o receio ou náusea pela consumação dos desejos; a apatia contemplativa e a abulia (incapacidade de querer); a realidade vista como ambígua; a importância da música. Por outro lado, trata-se de uma poesia intelectual que se debruça sobre a problemática do conhecimento - o homem só atinge os fenômenos, as aparências do real, e não a essência, o verdadeiro real; o homem só pode dispor de coisas mutáveis, indefinidas, inconsistentes, fugidias.

O livro foi publicado em 1920 sob os cuidados editoriais de Ana de Castro Osório, por quem o poeta se enamorou.

 

Poema escolhido:

Ó cores virtuais que jazeis subterrâneas,

- Fulgurações azuis, vermelhos de hemoptise,

Represados clarões, cromáticas vesânias -,

No limbo onde esperais a luz que vos batize,

 

As pálpebras cerrai, ansiosas não veleis.

 

Abortos que pendeis as frontes cor de cidra,

Tão graves de cismar, nos bocais dos museus,

E escutando o correr da água na clepsidra,

Vagamente sorris, resignados e ateus,

 

Cessai de cogitar, o abismo não sondeis.

 

Gemebundo arrulhar dos sonhos não sonhados,

Que toda a noite errais, doces almas penando,

E as asas lacerais na aresta dos telhados,

E no vento expirais em um queixume brando,

 

Adormecei. Não suspireis. Não respireis.

 

Branco e Vermelho

 

A dor, forte e imprevista,

Ferindo-me, imprevista,

De branca e de imprevista

Foi um deslumbramento,

Que me endoidou a vista,

Fez-me perder a vista,

Fez-me fugir a vista,

Num doce esvaimento.

 

Como um deserto imenso,

Branco deserto imenso,

Resplandecente e imenso,

Fez-se em redor de mim.

Todo o meu ser, suspenso,

Não sinto já, não penso,

Pairo na luz, suspenso...

Que delícia sem fim!

 

Na inundação da luz

Banhando os céus a flux,

No êxtase da luz,

Vejo passar, desfila

(Seus pobres corpos nus

Que a distancia reduz,

Amesquinha e reduz

No fundo da pupila)

 

Na areia imensa e plana

Ao longe a caravana

Sem fim, a caravana

Na linha do horizonte

Da enorme dor humana,

Da insigne dor humana...

A inútil dor humana!

Marcha, curvada a fronte.

 

Até o chão, curvados,

Exaustos e curvados,

Vão um a um, curvados,

Os seus magros perfis;

Escravos condenados,

No poente recortados,

Em negro recortados,

Magros, mesquinhos, vis.

 

A cada golpe tremem

Os que de medo tremem,

E as pálpebras me tremem

Quando o açoite vibra.

Estala! e apenas gemem,

Palidamente gemem,

A cada golpe gemem,

Que os desequilibra.

 

Sob o açoite caem,

A cada golpe caem,

Erguem-se logo. Caem,

Soergue-os o terror...

Até que enfim desmaiem,

Por uma vez desmaiem!

Ei-los que enfim se esvaem,

Vencida, enfim, a dor...

 

E ali fiquem serenos,

De costas e serenos.

Beije-os a luz, serenos,

Nas amplas frontes calmas.

Ó céus claros e amenos,

Doces jardins amenos,

Onde se sofre menos,

Onde dormem as almas!

 

A dor, deserto imenso,

Branco deserto imenso,

Resplandecente e imenso,

Foi um deslumbramento.

Todo o meu ser suspenso,

Não sinto já, não penso,

Pairo na luz, suspenso

Num doce esvaimento.

 

Ó morte, vem depressa,

Acorda, vem depressa,

Acode-me depressa,

Vem-me enxugar o suor,

Que o estertor começa.

É cumprir a promessa.

Já o sonho começa...

Tudo vermelho em flor...

 

 

 

Os Bruzundangas, de Lima Barreto

Os Bruzundangas, publicado em 1923, é obra póstuma de Lima Barreto. Uma coletânea de crônicas, onde o autor com a percepção aguda e crítica, não deixa escapar nada. Satiriza uma fictícia nação onde ele mesmo teria residido. Seus capítulos enfocam, entre outros temas, a diplomacia, a Constituição, transações e propinas, os políticos e eleições em Bruzundanga. Critica os privilégios da nobreza, o poder das oligarquias rurais, a futilidade das sanguessugas do erário, desigualdades, saúde e educação tratadas com desdém, enfim, mazelas parecidas às de um país real. Ao lê-lo, tem-se impressão de que o escritor não se fez arauto de seu tempo; o Brasil é que patinou nos descaminhos de si.

 


 

Com malandrice carioca e estilo ágil, próximo da caricatura e zombaria, o afro-brasileiro Lima Barreto é mestre da ficção de escárnio. Nas raízes do imaginário país grassam oportunistas, apaniguados, retrógrados e escravocratas de quatro costados. Sobre os usos e costumes das autoridades, escreve que não atendem às necessidades do povo, tampouco lhe resolvem os problemas. Cuidam de enriquecer e firmar a situação dos descendentes e colaterais. Diz: não há homem influente que não tenha parentes e amigos ocupando cargos de Estado; não há doutores da lei e deputados que não se considerem no direito de deixar aos filhos, netos, sobrinhos e primos gordas pensões pagas pelo Tesouro da República. Enquanto isto, a população é escorchada de impostos e vexações fiscais; vive sugada para que parvos, com títulos altissonantes disso ou daquilo, gozem vencimentos, subsídios e aposentadorias duplicados, triplicados, afora os rendimentos que vêm de outras e quaisquer origens.

Ao presidente de Bruzundanga, que deve ser um deslumbrado e completo idiota, chamam-no "Manda-chuva"; à justiça, "Chicana". A Carta Magna redigida por espertos (e não expertos) explicita um providencial adendo: toda a vez que um artigo ferir interesses de parentes de pessoas da ‘situação’ ou de membros dela, fica entendido que não tem aplicação. No fundo, todos flertam com a "situação" porque ela garante o continuísmo. À plebe desmemoriada e ignorante, pra que não fique gritando viva o doutor Clarindo!, viva o doutor Carlindo!, viva o doutor Arlindo! – quando o verdadeiro nome do doutor é Gracindo, criou-se a "Guarda do Entusiasmo", constituída de dez mil indicados sem concurso, uniformizados "de povo", com função de disciplinar e reorientar as aclamações e vivas da multidão.

Muito mais é Bruzundanga em seus cânones sócio-políticos, religiosos e culturais, e no atraso visceral – conforme se lê no prefácio – de uma nata enquistada no canibalismo simbólico da "Arte de Furtar": os maiores ladrões são os que têm por ofício livrar-nos de outros ladrões.

No primeiro capítulo de Os Bruzundangas, Lima Barreto critica a superficialidade e o preciosismo da literatura parnasiana, além da linguagem misteriosa e mística do Simbolismo. Cita ainda um verso do poeta Worspikt em que há a repetição da consoante "L" (aliteração), recurso chamado no livro de "harmonia imitativa".

No capítulo "Um Grande Financeiro", Lima Barreto critica os economistas incompetentes e contraditórios da Bruzundanga, através do personagem caricatural Felixhimino Ben Karpatoso.

"Bruzundangas" é um substantivo feminino que pode significar "palavreado confuso, mistura de coisas imprestáveis, mixórdia, trapalhada, embrulhada". Neste livro, Lima Barreto fala da arte de furtar, de nepotismos desenfreados, de favorecimentos e privilégios. A própria sociedade, as eleições, a religião, os literatos e a imprensa são cáusticamente abordados por ele e servem de pano de fundo para a construção de sua obra literária.

O livro é um diário de viagem de um brasileiro que morou tempos na Bruzundanga, conheceu sua literatura, a escola samoieda (falsa, monótona e afastada da cultura, com autores fúteis e aconchavados com a classe dominante); sua economia confusa que exauri a riqueza do país, sendo dominada pelos cafeeiros da província de Kaphet.

Mostra também a obsessão por títulos como os de nobreza e os de doutor, mesmo quando seus possuidores não são nobres e são pouco letrados. A seguir critica a legislação (a Constituição, baseada na de um país visitado por Gulliver, tem uma lei que diz que se a lei não for conveniente a situação ela não é válida), a política (os presidentes, chamados Mandachuvas, assim como os ministros, os heróis e os deputados, são estúpidos e vazios), o processo democrático (tão corrupto quanto era na República Velha), a ciência, o resto da cultura (quase nula, por vezes perto do negativo), o exército e a política internacional.

Lima Barreto fala de dois tipos de nobreza existentes na Bruzundanga: a nobreza doutoral e a que ele chama "de palpite". A primeira é formada pelos doutores, os que têm diploma de nível superior. Lima Barreto diz que a sociedade em geral valoriza extremamente os doutores. No final do capítulo referente à nobreza doutoral, ele expõe uma escala de valores dos cursos de nível superior, os dois mais valorizados são o de Medicina e o de Direito, respectivamente.

Repleto de caricaturas de personagens da vida política da época, como Venceslau Brás e o Barão de Rio Branco, o livro é uma crítica ferina a sociedade brasileira, sua literatura e sua organização político- econômica.

 

 

Os Cus de Judas, de Antônio Lobo Antunes

Seis anos após o término da guerra colonial, é lançado, em 1979, Os Cus de Judas, de Antonio Lobo Antunes, que conta a trajetória de um soldado português que servira o exército colonial em Angola e, a partir desse contacto com a situação em África, vê sua vida, seus valores sendo destruídos.

Segundo o autor, em entrevista publicada em Lisboa em abril de 1994, o livro é parte de uma trilogia que inclui Memória de Elefante (anterior) e, Conhecimento do Inferno (posterior) a obra em questão. O retrato da guerra colonial é a marca dessa etapa ou ciclo de sua vida, como ele mesmo afirma.

"A dolorosa aprendizagem da agonia" - assim classifica Lobo Antunes a guerra de Angola, fração da guerra colonial portuguesa; assim se resume o processo a que é submetido o leitor na descoberta daquele que é o segundo livro do autor.

Encontramo-nos perante um testemunho. Ao evoluirmos gradualmente na sua leitura vamos desmontando a guerra do ultramar, sendo guiados através dos 27 meses que o narrador se encontrou ao serviço da pátria portuguesa.

Partindo do relato do narrador, das experiências a que foi sujeito e da forma como as interpreta e com elas lida, traça-se um percurso que desemboca inevitavelmente na conclusão/admissão do gigantesco, inacreditável absurdo da guerra.

Delineia-se um retrato demasiado bruto e verdadeiro para se poder falar de uma caricatura. A seriedade e crueldade da narrativa fazem surgir o livro mais como que uma denúncia. Ou antes: é deste modo apresentada uma visão da realidade, uma posição sobre os fatos, uma voz silenciada que entra em erupção e vem contar a sua versão. Numa narrativa não-linear e fragmentada, Lobo Antunes revela as inquietações existenciais de um ser humano, na indelével experiência de uma guerra, que se misturam às memórias de infância e juventude na Lisboa salazarista.

O autor utiliza-se, na maior parte do romance, do fluxo de consciência e da associação de idéias, para construir a história e o perfil de seu narrador-protagonista, um personagem que, a partir de "uma dolorosa aprendizagem da agonia", vê sua vida e seus valores estilhaçados pela melancolia. O que lhe resta são fragmentos de memória — a criança que visitava com os pais o jardim zoológico aos domingos, o jovem que assiste impassível a seu futuro sendo traçado pela autoridade inquestionável de uma família salazarista, o adulto apático e frustrado diante da violência que lhe retira as rédeas e o sentido da vida.

Decadência, putrefação, pestilência, morte. Adicionando canalhice, violência e absurdidade poder-se-ia reunir as palavras-chave basilares de tal exposição.

O texto de Antunes não se enquadra no gênero de narrativa de viagem tal como é concebido pela literatura moderna, entretanto, é possível a leitura de um discurso de viagem apanhado de viés, ou seja; a desconstrução ou a ante-viagem (se é que podemos utilizar esses termos), visto sob a óptica de uma simbologia atual.

 

Tempo / espaço / estrutura

Os estilhaços que recompõem os contornos da memória nos romances de Lobo Antunes recolhem informações vividas em espaços de tempo variados, mas contados em breves períodos, de chofre, de um só fôlego. No caso de Os Cus de Judas, o “ato de contar” tem as ações transcorrendo em uma só noite. Se o tempo é breve no presente da narrativa — entre a mesa de um bar, algumas boas doses de uísque, um convite e o anseio para vencer a solidão - o tempo recolhido pela memória é elástico, é um tempo que se volta para a infância remota, as recordações da família, um tempo em que ele se alista nas fileiras da força colonialista portuguesa, um tempo em que ele parte e, finalmente, um tempo em que ele sobrevive na África, numa luta que lhe parece vazia de sentido.

Com vinte e três capítulos curtos, seqüenciados de A a Z, sem interrupções na ordem do alfabeto, desenrolam-se ações em dois planos temporais: um cronológico, período de tempo de uma noite, que vai do encontro do narrador com uma mulher em um bar até o amanhecer deles, depois de uma noite de sexo, sem amor. O tempo cronológico constitui-se no tempo da fala, no tempo de um enorme monólogo em que o narrador expõe a uma mulher não nomeada suas angústias e a mediocridade da vida que o cerca; outro passado, um tempo elástico reconstituído a partir de fragmentos soltos, recolhidos dos escombros das memórias constituem uma coleção de insucessos que o levam a sentir-se um ser espúrio, um pária, um fracassado.

Convém lembrar que a sensação de fracasso que domina o narrador está intimamente associada aos insucessos dos tempos em que ele exercia funções no exército português de combate às guerrilhas africanas.

Passamos vinte e sete meses juntos nos cus de Judas, vinte e sete meses de angústia e de morte juntos nos cus de Judas, nas areias do Leste, nas picadas dos Quiocos e nos girassóis do Cassanje, comemos a mesma saudade, a mesma merda, o mesmo medo, e separamo-nos em cinco minutos, um aperto de mão, uma palmada nas costas, um vago abraço, e eis que as pessoas desaparecem, vergadas ao peso da bagagem, pela porta de armas, evaporadas no redemoinho civil da cidade.

Durante uma única noite, o narrador tece o enredo da obra, elaborando um relato em que confunde as ações de guerra, a política desenvolvida pelo seu país quanto às colônias na África e as posições assumidas por ele (país) e ele (narrador) após o término do conflito, o passado, o casamento, enfim, misturam-se os fatos todos da vida que afloram pelas doses excessivas de álcool e de solidão.

 

Foco narrativo

A obra é narrada em primeira pessoa, por um narrador-personagem.

Linguagem

Narrativa altamente sarcástica. Linguagem irreverente, inovadora,  o  erotismo com que descreve as mulheres, dá, à obra, um caráter feminino. A linguagem chula, os palavrões que aparecem no decorrer da obra, revelam a revolta do narrador com a ditadura, salazarista. O autor-narrador, em um bar, usando o monólogo, pois conversa com uma mulher que nunca lhe responde, enquanto bebem, narra-lhe a sua vida, fazendo uma crítica mordaz à Ditadura, não só em termos políticos, como também à castração cultural por ela imposta.

Vindo de uma família de militares, o universo familiar também não escapa ao crivo crítico, principalmente os velhos, avós, avôs, tias e tios, por refletirem um mundo estagnado, sem perspectivas de avanço.

Lembranças sinestésicas (sinestesia) da infância, representada por termos ligados ao jardim zoológico: bichos, vendedores ambulantes e do professor preto nos rinques de patinação, mesclam-se ao mundo adulto: termos ligados à medicina.

Tudo isso forma uma linguagem inovadora, de uma plasticidade surreal.

Ex.: “o empregado de ancinho que empurrava as folhas para um balde aparentava-se, sem dúvida ao cirurgião que me varreria as pedras da vesícula para um frasco coberto de rótulo adesivo; uma menopausa vegetal em que os caroços da próstata e os nós dos troncos se aproximavam e confundiam...”

“O restaurante do jardim, onde o odor dos animais se insinuava em farrapos diluídos no fumo do cozido, apimentando de uma desagradável sugestão de cerdas o sabor das batatas..”

“ ...guaritas de sentinelas onde oficiavam empregados bolorentos, a piscarem órbitas míopes de mocho na penumbra úmida?”

 

Personagens

Sofia - lavadeira negra com quem o narrador-personagem teve um filho.

Isabel - sua ex-esposa.

Tia Teresa – a velha tia que nunca o elogiava, só o criticava.

Maria José

Mete Lenha

Senhor Jonatão – negro enfermeiro com sorriso de Tim-Tim.

 

Enredo

Ao retornar a Portugal, após vinte e cinco meses de sofrimento, servindo como médico na Guerra Colonial da África, o autor-narrador se  desabafa, num monólogo com uma moça em um bar. O sofrimento, a violência, as mortes e  a hipocrisia política vivenciadas, marcaram-no de tal maneira que ele não consegue se adaptar à vida costumeira, tanto que ele acaba se separando da mulher, Isabel, com quem tinha duas filhas.

Enquanto conversa com a moça, fala da casa em que crescera, perto do zoológico, de seus pais, do quarto dos irmãos, de onde se viam os camelos e  ouviam as focas.

Ironicamente, fala das tias: “avançavam aos arrancos como dançarinas de caixinha de música nos derradeiros impulsos da corda...e proclamavam azedamente” que ele estava magro.

A frase que elas diziam “felizmente a tropa há-de torná-lo um homem.”, acabou se tornando uma profecia transmitida ao longo da sua infância e da adolescência “por dentaduras postiças de indiscutível autoridade, que se prolongava em ecos estridentes nas mesas de canasta, onde as fêmeas do clã forneciam à missa dos domingos...”.

Os tios, que ele admirava em criança, em adulto, são vistos como fúteis, que só sabiam discutir o tamanho das nádegas das criadas.

A figura de Salazar, que o acompanha desde criança, é vista com ironia.

Lembra-se do dia da sua partida para Angola, a bordo de um navio cheio de tropa e da “tribo”, que compareceu em peso no cais, num arroubo patriótico, agradecida ao governo que lhe possibilitava a metamorfose de o transformar em homem. Para ele, os familiares presentes tinham ido assistir à sua própria morte.

No campo militar em Santa Margarida, a ginástica diária do autor e demais militares era a masturbação.

Lá, as fúteis senhoras do Movimento Nacional Feminino iam distribuir medalhinhas de santos com a efígie de Salazar.

À medida em que o navio se afastava de Portugal, o autor se questionava, tentando buscar um motivo para estar ali.

Ao chegar em Luanda, depara-se com a miséria: “as  gordas barrigas de fome das crianças imóveis.”. Sentindo-se mal,  pois fora nascido e criado “num acanhado universo de crochê, crochê de tia-avó e croché manuelino”, tentava achar uma justificativa bíblica para tamanho massacre.

Foi em Luanda que começou a sua dolorosa aprendizagem da agonia.

Em Gago Coutinho ficava o posto da PIDE (Policia Internacional de Defesa do Estado), a administração, o café do Mete Lenha e a aldeia dos leprosos.

Uma vez por semana o sino da igreja tocava chamando os leprosos para remédios no hospital. Lá, o senhor Jonatão, o enfermeiro negro da  delegação de saúde nominal, que sorria constantemente como os chineses de Tim-Tim, distribuía-lhes comprimidos.

Gago Coutinho era também o café do Mete Lenha, branco sopinha de massa cujo esforço pra falar o torcia de caretas de defecação, casado com “uma espécie de botija de gascidia enfeitada de colares estridentes, sempre a queixar-se aos oficiais dos beliscões com que os soldados lhe homenageavam as nádegas atlânticas, difíceis, aliás de discernir numa mulher aparentada a um imenso glúteo rolante em que mesmo as bochechas possuíam qualquer coisa de anal e o nariz se aparentava a inchaço incômodo de hemorróida.”

No edifício sinistro do hospital civil,  a cada ferido  de emboscada ou de mina que chegava, o autor narrador se questionava se eram os guerrilheiros ou Lisboa que os assassinavam, Lisboa, os americanos, os russos, os chineses e esbravejava: “ o caralho da puta que o pariu combinados para nos foderem os cornos em nome de interesses, que me escapam, quem me enfiou sem aviso neste cu de Judas de pó vermelho e de areia.”

Às vezes chegavam visitas inesperadas ao cu de Judas: oficiais do Estado-Maior de Luanda, que o formol do ar condicionado conservava.

Já bêbado, revela que em 61 ele já fugia da polícia do Estádio Universitário e que a única coisa que Salazar fazia era espetar o dedo.

Retomando a narrativa da África, fala dos bordéis e das bebedeiras.

Em Chiúme, a região mais miserável,  em 22 de junho de 71, é chamado no rádio para receber a notícia do nascimento da sua filha, casara-se quatro meses antes da partida.

Ainda lá, depara-se com uma cena chocante, sessenta pessoas encerradas em uma senzala, alimentavam-se em latas enferrujadas, de restos de comida do quartel.

Após oferecer-se para pagar a conta, ele fala sobre um exército de negros que servia a PIDE e era conhecido como “os assassinos a soldo dos colonialistas portugueses”

Nove meses depois, foi conhecer a filha.

Retornando à África,  conheceu Sofia, uma lavadeira negra, com quem teve um filho, mas ela foi levada pela PIDE para “trocar o óleo dos soldados”, esta foi a informação que ele recebeu quando a procurou. O narrador, mesmo se revoltando com a situação, nada fez para resgatá-la.

Mesmo em seu apartamento e em companhia da mulher do bar, ele continua a narrativa sobre a guerra , chegando a se sentir um prisioneiro do governo.

Após a noite amorosa fracassada, ele começa a imaginar vários apetrechos supérfluos anunciados para os homens se darem bem, ou no amor ou na vida. É uma galeria de produtos obsoletos, como claviculone eletrônico, spray norueguês cebolov, etc – além de se perceber aqui que o narrador não consegue mais se reintegrar na sociedade, tem-se uma crítica ao consumismo.

Vinte sete meses depois, em Portugal, foi visitar a tia. Assim que entrou, a única coisa que ouviu da tia foi: “ – Estás mais magro. Sempre achei que a tropa te tornaria homem, mas contigo não há nada o que fazer.”

Assim que acabou de narrar, a “interlocutora muda”, sai e ele, como costumava fazer quando criança, pensa em puxar os lençóis para cima e fechar os olhos, temendo, ironicamente, a visita da velha tia Teresa.

 

Comentários

Discutir o tema da viagem como resgate de uma experiência humana dolorosa, num cenário em que os atores não dialogam amigavelmente, não desejam trocas de experiências culturais e, se sobreviverem, trarão no corpo as marcas de uma guerra fratricida, é o cerne dessa comunicação.

A personagem não nomeada de Antunes é incitada por membros de sua família, tradicional portuguesa, a acreditar que o exército fabrica homens de verdade. As maiores virtudes tais como; valentia, honestidade, caráter entre outras, são atributos da farda, não do homem.

"Estás magro (...) . Felizmente que a tropa há de torná-lo homem. (Os cus de Judas, pág.12)

Numa crescente angústia o soldado mobilizado para combater em terras de além-mar, vai sendo conduzido, como um boi para o abatedor. Imagens do navio se afastando do cais a incerteza da volta, o choro, as lágrimas, talvez a última visão da cidade vão sendo retratadas.

"...Lisboa principiou a afastar-se de mim num turbilhão cada vez mais atenuado de marchas marciais em cujos acordes rodopiavam os rostos trágicos e imóveis da despedida..." (idem, pág. 16)

Porém, nem todos os que eram mobilizados deixavam-se levar nessa viagem quase suicida. Registros militares davam conta de um sem números de faltosos por ocasião da chamada para o engajamento final. O procedimento é assim descrito pelo jornal Diário de Notícias.

"Nos primeiros tempos, o capelão rezava uma missa campal, que depois caiu em desuso; o comandante da unidade mobilizadora, um coronel, proferia umas palavras alusivas à missão e entregava o guião ao comandante do batalhão mobilizado, um tenente-coronel, ou então da companhia, um capitão; (...) era concedida a licença de dez dias antes de embarque e pagas as ajudas de custo.

Neste momento, o militar era um mobilizado, ia a casa, despedia-se da família, fazia umas asneiras por conta, arranjava umas correspondentes para lhe escreverem, ou umas madrinhas de guerra e voltava à unidade mobilizadora para daí iniciar verdadeiramente a viagem.

Neste regresso faltavam uns quantos camaradas, que tinham decidido dar o salto para o estrangeiro ou baixado ao hospital com uma doença mesmo a calhar, mas os que restavam formavam de novo na parada do quartel..." (Jornal Diário de Notícias- Fasc. 5 pág. 50)

Para aqueles que iam sendo embarcados a viagem não é de busca, nem de aventura, tampouco trata da questão de conhecimento ou de experiências novas que se buscam por iniciativas próprias. São seres humanos que não entendem por devem ir matar outros de sua espécie em prol de um poder político que não lhes dizia respeito nem sequer o exerciam.

"Por volta do meio-dia, o navio recolhia as escadas e os cabos, a sirena apitava e, durante alguns anos, a instalação sonora tocava uma marcha intitulada ‘Angola é nossa’, independentemente do destino – um ritual abandonado nos anos mais próximos do fim da guerra.

O navio afastava-se lentamente, virava a proa à foz do Tejo, passava por baixo da ponte e deslizava diante da Torre de Belém" (J D.N. pág.5l)

O mar: estrada líquida pela qual Portugal alcançou a notoriedade em função da rota de suas caravelas, é, neste caso, símbolo de agruras para a soldadesca em cujo destino preferem não pensar. Os pioneiros navegantes contemplaram suas águas salgadas com outros olhos, com espanto e admiração. Estes, que vão rumo aos Cus de Judas, quase não o reparam e, se o fazem, o maldizem.

Para o soldado português combatente na guerra colonial na obra de Antunes tanto a cidade como o mar são visto como símbolos negativos.

Cidade colonial pretensiosa e suja de que nunca gostei, gordura de umidade e calor, detesto as tuas ruas sem destino, o teu Atlântico domesticado de barrela (...) O meu país, Ruy Belo, é o que o mar não quer (Os cus de Judas, pág. 68)

Para a personagem de Antunes, a água do mar de Luanda ‘assemelhava-se a creme solar turvo’ (pág.19), e eles (soldados), não passavam de ‘peixes mudos em aquários (pág.86), ratificando a simbologia do mar que já constatara na poesia Melo e Castro.

Após a chegada dos portugueses(...) o mar passa a ser, não só a via da invasão européia portadora da descaracterização cultural, mas também, a via da partida, da ruína e da morte causadas pela captura e venda dos escravos, pela emigração forçada e pelo drama dos contratados. Mar, espaço da morte, de onde se não volta mais.( págs. 11-16)

Lobo Antunes tece um discurso que nos deixa pistas sobre a desconstrução da viagem no contexto colonial português, que se revelará em outras obras como As Naus. Neste cenário o encontro com a situação de guerra vai expor as feridas que ainda ecoam no contato entre colonizador e colonizado.

 

 

 

Jaime Bunda, Agente Secreto - Pepetela

Ano da edição original: 2001. Editora: Publicações Dom Quixote

"A moça se despediu da amiga e avançou para a avenida. Ainda conservava nos lábios o sorriso da despedida, quando parou bruscamente, assustada com o automóvel preto. O carro também estacou de súbito. O condutor viu o sorriso desaparecer dos lábios dela. Mediu num relance o tamanho dos seios pontudos, querendo furar o vestido muito curto. Esperou gentilmente que se refizesse do susto e continuasse a travessia. Ela hesitou, mas depois agradeceu com um vago sorriso para os vidros escuros e correu à frente do carro, mostrando o corpo meio de menina meio de mulher, moldado pelo vestido justo. Uma gazela, uma cabra de rabo de leque, pensou o motorista, sentindo compulsivos apetites de caçador. Arrancou com o carro e seguiu até ao fundo da Ilha."

Para desanuviar de umas leituras mais pesadas, em termos de temas, nada melhor do que ter o Jaime Bunda, do Pepetela, como companhia. Uma personagem com este nome só pode proporcionar uma leitura divertida. :) Foi o que aconteceu com este livro, que me fez sorrir, enquanto o lia no metro e que deve ter provocado alguns sorrisos, também, àqueles que repararam na capa, no título e, já agora no meu "delicioso" marcador! :p

Embora possa parecer um livro diferente daqueles a que o Pepetela nos acostumou, a verdade é que a única diferença é o tom em que está escrito, mais irónico e divertido. Fala de Angola independente e de toda a corrupção que parece proliferar por lá. Das desigualdades sociais e da facilidade com que se gasta o muito dinheiro que o país tem. Fala um pouco do deslumbramento em que alguns angolanos parecem viver, ansiando por uma posição que lhes dê poder e acesso ao tal dinheiro que parece perseguir os governantes do país e aqueles que gravitam à volta destes. O tema pode não ser novo, mas a forma como é abordado é uma novidade, não tanto para mim que já tinha lido o Jaime Bunda e a Morte do Americano (segundo livro com esta personagem de anca larga) e tendo em conta que o Jaime Bunda é uma personagem deliciosa, não há forma de não se gostar deste livro.

De uma forma muito resumida a história de Jaime Bunda, Agente Secreto é a história de um estagiário dos SIG (espécie de serviços secretos angolanos) que de repente é chamado a investigar a violação e homicídio de uma menina de 14 anos, uma "catorzinha". Jaime Bunda, alcunha que lhe serve como uma luva, é um jovem viciado em policiais americanos, única fonte dos seus conhecimentos de investigação criminal, que decide agarrar esta oportunidade com unhas e dentes. Com uma imaginação galopante e um instinto (ou sorte) extraordinário acaba, no decorrer da sua investigação, por "tropeçar" numa figura sinistra que todos temem. Numa história cheia de mal-entendidos, meias-verdades e golpes de sorte, Jaime Bunda acaba por se ver envolvido numa investigação que o vai tornar numa espécie de herói e tirá-lo da posição de eterno estagiário no Bunker (nome porque também são conhecidos os SIG). Nos entretanto, Jaime Bunda tem ainda de lidar com Florinda, a sua namorada que é casada com um traficante de diamantes que vai, finalmente tornar o seu negócio legal com a ajuda de um General. Tem ainda de aturar a má vontade da mulher do tio, a Tia Sãozinha, que não perdoa o facto de ter Jaime Bunda a viver no anexo de sua casa e de graça, sem receber um único dos ansiados dólares.

Como podem ver é um livro que promete e, digo-vos eu, que cumpre. No entanto e porque, como muito bem se diz por ai, "não há amor como o primeiro", gostei mais do Jaime Bunda e a Morte do Americano. Mas, é sem qualquer hesitação que recomendo este primeiro livro do Jaime Bunda! Este e qualquer outro do Pepetela, já que estamos numa de recomendações. :)

 

Excerto:

"Mas foi numa aula de educação física, mais propriamente de vólei, que surgiu a alcunha. Às tantas, o professor, irritado com a falta de jeito ou de empenho do aluno, gritou:

- Jaime, salta. Salta com a bunda, porra!

A partir daí, ficou Jaime Bunda para toda a escola. De facto, as suas nádegas exageravam. Ele, aliás, era todo para os redondos, até mesmo os olhos que gostava de esbugalhar à frente do espelho, treinando espantos. A mãe é que não gostou nada quando ouviu colegas tratarem-no assim, és um mole, não devias que te chamassem um nome ofensivo, mas ele encolheu os ombros, a minha bunda é mesmo grande, vou fazer mais como então?"

Não são raros os que, ao ouvirem o título Jaime Bunda, Agente Secreto, de Pepetela, rememoram parodicamente o famoso James Bond, o 007, que habitou, com suas parafernálias salvadoras, os sonhos encantados da juventude nos cinemas. Não bastasse o título, a capa: as generosas nádegas do personagem são exibidas com a graça de quem não se preocupa nem um pouco com a aparência. Mas a lupa... lá está ela, bem firme na mão do rapaz, e o olho, muito vivo, salta da lente como se afrontasse o leitor.

Não são raros os que, ao ouvirem o título Jaime Bunda, Agente Secreto, de Pepetela, rememoram parodicamente o famoso James Bond, o 007, que habitou, com suas parafernálias salvadoras, os sonhos encantados da juventude nos cinemas. Não bastasse o título, a capa: as generosas nádegas do personagem são exibidas com a graça de quem não se preocupa nem um pouco com a aparência. Mas a lupa... lá está ela, bem firme na mão do rapaz, e o olho, muito vivo, salta da lente como se afrontasse o leitor.

Quem já conhece outras obras do autor se assusta num primeiro momento, mas, logo em seguida, as marcas do estilo pepeteliano começam a aparecer:

Quando analisamos a obra de Pepetela, procuramos vê-la nos gestos de seus atores, sejam eles personagens, narradores e as marcas implícitas do próprio autor. Seus heróis são paradigmas que não se circunscrevem apenas a Angola. Apresentam na verdade modelos de conduta extensíveis à condição humana um paradigma do homem em geral em sua história e no seu impulso de transformação. (ABDALA JUNIOR, 2003:240)

O romance se apresenta dividido em quatro «livros» acrescidos do «prólogo» e do «epílogo». O autor ficcional se incumbe do «prólogo», mas, não satisfeito, interfere nada menos que quatorze vezes no «livro do primeiro narrador» e, em seguida, demite-o sem piedade, irrevogavelmente (p. 131). Contrata, então, Malika, uma das personagens, para tecer o «livro do segundo narrador». Escrito este, o autor ficcional dá por concluída a participação da moça e recontrata o primeiro narrador, proporcionando-lhe, assim, uma segunda oportunidade na vida (p. 167), mas o despede novamente logo depois de concluída a tarefa. Tem voz, então, outro narrador, que tece o «quarto livro» em terceira pessoa e, por fim, o autor ficcional dispensa narradores e pega de novo na palavra (p. 311), escrevendo o «epílogo». Sobre a trama, como bem observa SECCO, há duas estórias: a do crime e a do inquérito; porém, esta não é narrada por um amigo do detetive, e, sim, por uma polifonia discursiva que alterna as vozes de quatro narradores, todos falseadores e despistadores do assassinato inicial. A estória deste é apresentada no Prólogo por um 'pseudo-autor', ou seja, um 'autor ficcional' que comanda os quatro narradores e, ao mesmo tempo, se esconde e se revela, sendo marcado o seu discurso em itálico e entre colchetes, toda vez que faz uso da palavra. (SECCO, 2003:128)

Por serem divisadas duas estórias, valemo-nos da definição de que a novela criminal conta a história de um crime, ao passo que a novela de detetive, a história do esclarecimento de um crime (KOTHE, 1994:106) para afirmarmos, em seguida, que Jaime Bunda, Agente Secreto, não pode ser tomado tão-somente como romance policial ou de detetive. Com relação à trivialidade, caracterizada pela aparente inovação da estrutura superficial com a reprodução da estrutura profunda (KOTHE, 1994), a obra a ultrapassa e o faz transitando pela paródia. Isso porque o romance, ao tratar de questões que envolvem aspectos da realidade, torna extremamente difícil qualquer julgamento maniqueísta, gerando uma espécie de ambigüidade primeira, em que a metamorfose do desencanto, a impotência do justo e a provável não-punição dos maus (KOTHE, 1994:94), não são evidenciadas de modo caricato ou simplista. Desta forma, é exatamente a paródia esse formalismo aparentemente introvertido que provoca, de forma paradoxal, uma confrontação direta com o problema da relação do estético com o mundo de significação exterior a si mesmo, com um mundo discursivo de sistemas semânticos socialmente definidos (o passado e o presente) em outras palavras, com o político e o histórico. (HUTCHEON, 1991:42)

Ao analisarmos as idéias de KOTHE e de HUTCHEON em conjunto, podemos inferir que, embora Jaime Bunda, Agente Secreto, em princípio, tudo tenha para ser considerado uma das manifestações da literatura trivial, não o é graças à valorização contrastiva do estético e do real. Melhor explicando, a paródia não se caracteriza, necessariamente, literatura trivial, pois que parece oferecer, em relação ao presente e ao passado, uma perspectiva que permite ao artista falar para um discurso a partir de dentro desse discurso, mas sem ser totalmente recuperado por ele. Por esse motivo, a paródia parece ter se tornado a categoria daquilo que chamei de 'excêntrico', daqueles que são marginalizados por uma ideologia dominante. (HUTCHEON, 1991:58)

Discorrendo sobre a paródia e a polifonia bakhtiniana, NUTO (internet) afirma que a paródia procura mostrar, pela ridicularização ou por meios mais sutis, que o narrador critica ou, pelo menos, ironiza o estilo e a visão de mundo do discurso parodiado, enquanto as vozes estilístico-ideológicas podem ser refratadas pela intenção do narrador, de modo que essa refração parece tanto mais acentuada na estilização paródica, em que existe dissonância entre o tipo de discurso estilizado e sua elaboração pelo narrador.

Daí resulta a permissão para, em pleno acordo com SECCO, afirmarmos pela carnavalização de gêneros em Jaime Bunda, Agente Secreto:

Os «falsos romances policiais» contemporâneos se afastam dos textos de suspense e enigma, à Sherlock Holmes. Efetuam uma carnavalização do gênero, que visa, com irônico humor, a assinalar a dispersão e a banalização de crimes e detetives em tempos neoliberais, onde, em muitos países, a corrupção é generalizada e instituída por poderes paralelos e, até mesmo, centrais. (SECCO, 2003:125)

Vale lembrar que nada, nessa obra, parece fincar-se na casualidade; a simbologia e os entrelaçamentos se tornam evidentes à medida que a narrativa ocorre, num enorme espetáculo de entrelinhas. Mas não nos percamos de vista e observemos uma coisa de cada vez, a começar pelo enredo.

Os detalhes, no romance, são muitos e as tramas intrincadas, de modo que resumi-lo é uma tarefa que foge às nossas pretensões. Em lugar disso, optaremos por discutir alguns aspectos que nos saltaram aos olhos e merecem reflexão. A obra se inicia com o destacamento de Jaime Bunda para investigar o caso de Catarina Kiela Florêncio, uma garota de quatorze anos encontrada morta entre os mangais nos arredores de Luanda. Tal acontecimento, com o correr da narrativa, torna-se mero pretexto para, como é do estilo de Pepetela, discutir os percalços angolanos por meio de denúncias de manobras políticas que conduzem à corrupção.

Jaime Bunda, que, desde os tempos escolares aparece ridicularizado por suas enormes nádegas que lhe impediam o bom desempenho nas competições de vôlei, valendo-lhe o apelido adotado desde então, pode ser visto como o retrato da impotência do sistema. Entre todos os detetives da corporação, foi destacado um estagiário, fato que já produz uma certa desconfiança: trata-se de um crime de menor importância ou, ao revés, tão valoroso que há interesse em que não seja descoberta a autoria? Ou será, ainda, uma forma de demonstrar as qualidades profissionais do personagem que pertence às famílias tradicionais e, assim, justificar e garantir o poder? Esta idéia é reforçada pelo fato de ser revelado, pouco adiante, o parentesco do detetive estagiário com o D.O., Diretor Operativo, condição evidente para o acesso facilitado aos órgãos do setor público e aos cargos de alto escalão: D.O. mandou recrutá-lo, evitando as formalidades da praxe. Depois de admitido faria os testes e os treinos, abaixo a burocracia que impede o combate eficaz do crime. (p. 14)

O ingresso de Jaime na repartição, aliás, é ridicularizado pelos colegas, chegando, mesmo, o chefe imediato, Chiquinho Vieira, a afirmar que só o mantinha no serviço porque recebia ordens do D.O., o Director Operativo. Mas que não tivesse ilusões, por ele nunca passaria de estagiário. (p. 15) Assim, a participação do personagem é praticamente nula e, não raras vezes, destoa do ofício que ocupa, como nas ocasiões em que o mandam comprar cigarros ou quando permanece sentado sempre na mesma cadeira encostada na parede, por sinal, a última.

Não bastasse a alcunha e as facilidades na admissão, a personalidade do estagiário é moldada como de menor potencial, beirando a idiotia, segundo a visão dos demais. Isso porque, ao realizar as primeiras investigações no «caso Catarina», Jaime quis saber, por exemplo, quantas vezes a menina havia sido violada e insistia na hipótese de o crime ter acontecido via barco quando se sabia que Catarina foi vista pela última vez pegando carona num carro preto e grande.

Outro dado que merece referência é o nome escolhido para o protagonista. Além da fatal semelhança irônica ao famoso detetive James Bond, um James Bond subdesenvolvido (p. 120), por certo, a origem etimológica de «Jaime» remonta ao hebraico Iakob, Jacó, biblicamente representado como o que vence, o que supera e gosta de ser útil, generoso, tendo sempre a solução para os problemas. E, de fato, Jaime Bunda se mostra cheio de vontade de apresentar serviço, de resolver o caso que lhe confiaram, numa talvez ingênua justificativa para sua estada num organismo público há tanto tempo sem sequer ter prestado concurso. Por outro lado, a performance do personagem o encaminha para um fadado fracasso: são as nádegas, a incrível dificuldade de se levantar, as pistas deslocadas, o apego excessivo à comida, a submissão aos caprichos da namorada que só mantinha o relacionamento por interesse, além do fato de se gabar de uma «sapiência» risível em não poucas ocasiões, como em nunca ouviu dizer que dura lex sede lex, quer dizer, a lei dura muito e tem sede de lei? Frase do Aristóteles! (p. 24-5) e em com a verdade me enganas, como dizia o poeta espanhol Kirkegaard, já ouviu falar? (p. 26) Jaime Bunda, assim, apresenta faces paradoxais, ora pendendo para o burlesco, ora para o centramento intelectual, como nota o chefe Chiquinho Vieira: Este tipo ainda é mais parvo do que eu julgava. Ou então não é nada parvo, mesmo nada parvo, só disfarça. (p. 15)

Disfarçando ou não, o fato é que Jaime, seguindo uma pista desconexa para encontrar o autor do homicídio de Catarina, esbarrou numa enorme cadeia de corrupção que, embora não seja desvendada em sua integridade, está contida nas entrelinhas, sugerida, como, por exemplo, nas passagens: foi crescendo e descobrindo primeiro na literatura e no cinema, depois na vida, que havia polícias delinqüentes, corruptos, sem se diferenciarem nada dos bandidos (p. 87) e espero que um pássaro cague o carro do ministro, o que também não adiantava muito, se a pintura começasse a ficar com defeito logo ele mudava de carro, para isso serve o orçamento do Estado (p. 116).

Outra característica marcante no estagiário é a idolatria aos Estados Unidos desde a literatura (cita Perry Mason, Spilane, Raymond Chandler, Stanley Gardner, Highsmith, Stephen Kane, Dashiel Hammet, James Ellroy e Conan Doyle que, mesmo não sendo americano, escrevia em inglês) até aos carros e estratégias adotadas pela polícia de lá. Esse quase orgulho demonstrado por Jaime em relação aos Estados Unidos no romance lembra, ainda que indiretamente, a luta pelo poder entre dois dos partidos angolanos desde a independência de Portugal: a UNITA (União Nacional pela Libertação Total de Angola), comandada por Jonas Savimbi, e o MPLA (Movimento Popular pela Libertação de Angola), liderado por Agostinho Neto. O partido de Savimbi, vale recordar, era apoiado principalmente pelos Estados Unidos e pela África do Sul, enquanto o de Agostinho Neto recebia auxílio de Cuba e da antiga União Soviética. Embora não possamos, jamais, afirmar categoricamente que Jaime Bunda, Agente Secreto retome, de certo modo, a antiga contenda, é de se levar em conta que, na obra, duas polícias agem em tempos semelhantes: os SIG (Serviços de Investigação Geral), que serviam de vigilante acima de todos (p. 20) e o Ministério do Interior.

Ao ressaltar as vantagens americanas em detrimento das cubanas ou soviéticas, poderá estar Jaime Bunda, ainda que de modo ingênuo e inconsciente, reproduzindo o passado. Tantas são as referências e tão marcante é Pepetela na escritura de textos voltados à política que tais cogitações nos parecem pertinentes. À guisa de exemplo, vejamos a seguinte passagem: Kinanga estudou técnica investigativa em Pinar del Rio, Cuba, Território Libre de América, como tinha orgulho de dizer. Não o diria ao visitante, pois este era dos SIG, admiradores declarados dos Estados Unidos. (p. 27) Kinanga, se ainda não mencionamos, é o inspetor do Ministério do Interior e, até pelo nome, é possível inferir pela intencional nacionalidade emprestada ao organismo: «kinanga» ou «kimanga», em quimbundo, quer dizer espécie de cabaça ou vasilha em que se guardam objetos e na qual os jangadeiros levam comida para o mar (RIBAS, 1994) e, em geral, é nome que indica a descendência da Rainha Nzinga. Ainda sobre a União Soviética, Bunda reflete, criticando, de certo modo, o socialismo:

Será mesmo que Antero tinha dente de ouro? Pouco provável, nunca tinha estudado na União Soviética. Lá é que dente de ouro era o maior luxo de novo-rico, todo estudante ansiava por um. Por isso desapareceu a União Soviética, incapacitada de fornecer um dente de ouro a todos os estudantes, autóctones e estrangeiros. (p. 127)

Os aspectos políticos, embora se apresentem de modo tão conturbado e obscuro, parecem ser a tônica de Jaime Bunda, Agente Secreto, bem ao gosto de Pepetela. As denúncias se encadeiam a ponto de causar espanto. É o caso da aquisição da vivenda por Jeremias, o tio de Jaime, na época da independência, trecho que merece ser transcrito:

Nas convulsões antes da independência, o colono fez as malas e bazou para longe. Jeremias, que morava do outro lado da vala, numa barraca de madeira e adobe, agiu rapidamente. Instalou a família na vivenda, escreveu no muro «Ocupada por camarada do MPLA». Tia Sãozinha estava com medo, nos vão pôr na rua e já nem a barraca recuperamos. Mas quem é que tem coragem?, escrevi que é do MPLA, ninguém mais brinca conosco. De facto ninguém reclamou. Muito depois da independência, fez contrato com o Estado, que entretanto tinha confiscado as casas abandonadas pelos donos, e passou a pagar uma renda muito baixa. E quando nos anos 90 começou o processo da venda dos imóveis estatais, comprou a vivenda por um preço ainda mais simbólico. O trabalho foi ter de andar desta repartição para aquela e levar documentos de um funcionário para o outro, dentro da mesma repartição, durante meses, num processo burocrático de assustar o mais corajoso dos guerreiros. Não desistiu, perdeu dias e mais dias de trabalho, o que de facto não era grande problema, quem perdia não era ele, era o mesmo Estado para o qual trabalhava e que criava uma teia inextricável de burocracia para se desembaraçar das casas que já não queria administrar. (p. 50)

Verificam-se, nessa passagem, várias críticas, como a busca inescrupulosa pela obtenção de vantagens pessoais (ora, se quem assumiu o poder após a independência foi o MPLA, então, bastou que se pusesse uma placa do partido na frente da casa ocupada para não correr o risco de ser retirado dela?), a legalização das irregularidades, a vergonhosa burocracia e o desperdício dos recursos estatais dela advindos. Em outras palavras, é o próprio Estado quem cria a celeuma e a torna circular, recorrente, fator que incorre para seu enfraquecimento e descrédito perante os próprios cidadãos. Ainda sobre a corrupção, vejamos o que é narrado sobre o tráfico de cerveja e de diamantes:

Tráfico ilícito, pois claro, enquadrado no artigo tal do Código Penal. Em dias de grande honestidade intelectual, o estagiário tinha de reconhecer que nem sabia se ainda era tráfico ilícito, pois tão generalizado estava. Além do mais, a kamanga era legalizada quando convinha politicamente ao governo, por uma razão que lhe escapava, para logo a seguir voltar a ser criminalizada, por outra razão ainda mais obscura. (p. 51)

Denúncias que também merecem referência são as tocantes ao emprego do erário, gasto indistintamente, sem licitação ou concorrência, o que notamos em passagens como o Bunker não tinha orçamento, quer dizer gastava à vontade o dinheiro que fosse preciso (p. 29) e em que fala da diversidade dos valores dos cartões destinados aos salários, pois o cartão do Bunker era dos privilegiados, se levantava bué de cerveja com ele, pois dava acesso à Loja dos Dirigentes, melhor que a Loja dos Responsáveis, por sua vez incomparavelmente melhor que as lojas dos Quadros, um paraíso em comparação com as do Povo-em-geral (p. 64). Outro trecho bastante elucidativo é o da perseguição ao Tenebroso T, que sai do escritório no meio da tarde para um banhozinho de mar: Assim se gastava todo o dinheiro do Estado. (p. 116)

Como não poderia deixar de acontecer, a Igreja também é criticada e leva o seu carinhoso «tapa com luvas de pelica»:

Na Cidade Alta tudo é perto, sendo o melhor exemplo o facto de o Palácio do Arcebispo estar mesmo ao lado do Palácio do Governo, poder temporal e espiritual irmamente vizinhos, ligados provavelmente por algum subterrâneo ou porta camuflada para os encontros secretos. (p. 122)

Ironias assim demonstram o distanciamento do povo para com o Poder, quer dos homens, quer da Igreja; é considerado, de certa forma, um risco à incolumidade e aos interesses particulares dos representantes, fatos que notamos em trechos como: Na Cidade Alta estavam proibidos os vendedores ambulantes, pois um carrinho pode representar um perigo para um sítio onde está o Palácio do Governo, o Episcopado e vários ministérios e serviços vitais para o país (p. 116) e T desviou do Futungo, foi dar a volta obrigatória dos cidadãos comuns que nem podiam olhar a Presidência, pelo perigo de ficarem ofuscados pela intensa luz do Poder de Estado. (p. 111)

Mas deixemos a política um pouco de lado para voltar ao tema da não casualidade em Jaime Bunda, Agente Secreto. O nome da menina de quatorze anos violada e morta, Catarina Kiela Florêncio, por exemplo, combina exatamente com o seu papel no romance: o prenome Catarina vem do grego, kátharos, quer dizer pura, imaculada, e Florêncio, o patronímico, é derivado do teutônico e significa espécie de vida, correspondendo a pessoas racionais e objetivas em suas ações. Pois não é esse o perfil da personagem quase criança e, portanto, ainda sob o signo da pureza que foi violada e morta depois de apanhar carona num automóvel grande e preto?

Outro exemplo é Chiquinho Vieira, o inspetor do Ministério do Interior. Francisco quer dizer relativo aos franceses e diz respeito a pessoas de caráter firme e audaz, que, porém, encontram problemas no relacionamento social por ambicionarem a prevalência de sua opinião. É exatamente como se mostra Chiquinho no curso da narrativa (a cena em que Jaime persegue o carro do Tenebroso T e, ao descobrir-lhe o nome, pede a ficha ao chefe Chiquinho, que, atarantado, determinou ao estagiário que se afastasse daquela pessoa capítulo 9 do «livro do primeiro narrador» é bem elucidativa). Uma observação relevante é a de que o nome do inspetor, afinal, aparece sempre no diminutivo, Chiquinho, inferiorizando-o hierarquicamente na corporação dos SIG. Tal fato nos remete, mais uma vez, à antiga idéia da polaridade entre os SIG e o Ministério do Interior como a havida entre a UNITA e o MPLA: o que deveria ser complementar assume vozes contrastantes, colaborando para a desintegração do país.

Mais um personagem que merece ser invocado é Bernardo, o motorista que servia Jaime durante as investigações do «caso Catarina». Seu nome significa forte como um urso e indica pessoas com pouco entusiasmo para inovar ou improvisar, mas que se dão bem com a rotina. É exatamente o perfil do rapaz, que sequer sabe perseguir sem ser notado, mas que exerce o seu ofício de motorista com gosto e obstinação.

Também não nos referimos, senão de passagem, ao modo como as atenções para o homicídio da menor foram transpostas para a rede de corrupção instalada em Luanda. Cremos que agora seja uma oportunidade apropriada: o estagiário, por estar sem pista nenhuma e para ocupar o tempo, resolveu interrogar Salukombo, a última pessoa que havia visto Catarina com vida, a apanhar carona. Não sabendo a marca do automóvel, indicou o primeiro que viu à frente, grande e preto, ao que Jaime resolveu seguir, descobrindo a ponta do «iceberg» que levou à investigação do mundo das falcatruas e da corrupção: o Poderoso T é quem dirigia o carro, o mesmo cuja ficha negou fornecer o chefe Chiquinho. Desde então, torna-se extremamente difícil narrar todos os acontecimentos de Jaime Bunda, Agente Secreto. Para quem ainda não leu a obra, adiantamos mais alguns dados: o Diretor de Operações, parente do estagiário, tomando conhecimento de que a investigação se voltava para T, proporcionou ao primo todos os instrumentos necessários para que em tal atividade continuasse, ainda que sob o desmando de Chiquinho Vieira, a rigor, o chefe imediato de Jaime. Desta forma, a teia de delitos ligados ao descaminho, ao tráfico, à corrupção, enfim, é descoberta, ainda que os autores estejam sempre muito bem protegidos sob a égide do poder.

Tanto reiteramos a corrupção no seio político e, no entanto, nada mencionamos a respeito da vivenciada nas ruas, partida do próprio povo que, guardando-se as devidas diferenças, tem também, como no Brasil, o seu "jeitinho angolano" para tudo:

Quem precisasse de um carro de segunda mão, muitas vezes roubado mas de origem impossível de identificar, no Roque o podia comprar e mais à carta de condução e ainda tinha uma lição rápida, pelo menos para aprender a levar o veículo até casa. Quem quisesse ir aos Estados Unidos mas estivesse por alguma razão incapacitado para tal, não tinha maka, comprava passaporte já com visto de entrada, gentileza de um americano que viera para Angola ensinar democracia em cursos de duas horas e tivera acesso aos carimbos protegidos pelo FBI, CIA e PQP. (p. 84)

E por falar em Brasil, o Roque Santeiro, espécie de mercado livre onde se encontra de tudo, teve seu nome originado de uma telenovela de sucesso (quem não se lembra do Sinhozinho Malta lambendo os pés da viúva Porcina?). Brasil também foi nome de uma avenida, depois modificado, com o que não se conformava Bernardo: o Brasil, país irmão, foi o primeiro a reconhecer a independência de Angola. Como paga, tiraram de vez o nome de Brasil à avenida, deram o nome de Hoji ya Henda. (p. 92)

Sobre dois assuntos ainda nos apetece falar. O primeiro, relativo ao posicionamento de duas das figuras femininas presentes na obra: Florinda e Malika; o segundo, tocante aos indícios de homossexualidade de Armandinho. No romance policial ou de detetive, o detetive não costuma envolver-se afetivamente com outras personagens da trama. (KOTHE, 1994:108) Essa assertiva, no entanto, não é de todo válida para Jaime Bunda, Agente Secreto: é certo que Florinda não chega a namorada de Jaime, podendo ser considerada, isso sim, um «caso» do rapaz. Melhor mesmo, seria dizer de Jaime um «caso» de Florinda, pois é ela a grande manipuladora, a interessada em tirar proveito da condição privilegiada em que se encontrava o estagiário na corporação dos SIG para prevenir os passos do marido em seus negócios ilícitos. Havia, pois, na relação de Jaime e Florinda, algo mais que o simples relacionamento afetivo. Amor, pelo que se verifica, só havia da parte dele, que ela se fez calculista em defesa de outro, o próprio marido. Para auxiliá-lo, Florinda mantinha relações sexuais com Jaime, fazendo dele o que bem queria. Tanto isso é verdade que, ao perceber que o estagiário esgotara todas as informações que poderiam ser úteis aos negócios e, mais, tendo sabido que ele, por ciúme, contratara Antonino das Corridas para quebrar a perna ao seu marido, não logrou em despedi-lo entre tapas, arranhões e xingamentos.

Malika, por sua vez, é, além de narradora do «segundo livro», a mulher trazida por Said para servir como «isca» em seus negócios. Melhor explicando, o árabe sabia que seu pretenso companheiro de contrabando ou descaminho era fascinado por mulheres comprometidas e resolveu fingir-se casado, atraindo a atenção do sócio para a mulher e ambicionando, assim, auferir maiores lucros. Desmontado o esquema da falsificação da moeda, Malika foi encerrada num quarto e, para ter sua pena amenizada, escreveu o «livro do segundo narrador» sob a forma de relato, narrando tudo quanto sabia sobre a operação sinalizada por Said.

Verificamos, então, o comportamento das duas mulheres mais presentes em Jaime Bunda, Agente Secreto. Duas, por certo, completamente diversas: Florinda é manipuladora, Malika é manipulada; Florinda encerra as relações com Jaime quando bem entende, Malika vê finalizado o seu aparente relacionamento sem que para tal tenha colaborado. De qualquer modo, agem com vistas a beneficiar o seu respectivo homem.

O outro assunto que merece comentário é relativo à homossexualidade de Armandinho. Há várias passagens que invocam o encantamento do dito Land-Rover dos SIG pelas generosas nádegas de Jaime Bunda, como: Armandinho era um baixote e gordinho que tinha uma atracção fatal pelas nádegas de Jaime, embora não o confessasse. (p. 56) Fascínio maior lhe provocavam as coxas do estagiário, pois vivia dando palmadinhas nelas. Além dos leves toques, Armandinho, de vez em quando, servia-se de vocativos para atrair a atenção do estagiário: Está descansado, meu anjo, vou já tratar disso. (p. 120) Há, também, indícios de ciúme quando percebe o amigo a observar Malika: A lembrança da coxa clara emergindo no luar não saía da cabeça do estagiário, um eterno romântico. Por isso lhe deu o braço para ela se apoiar, o que provocou o mau humor de Armandinho, possivelmente uma ponta de ciúme. (p. 266).

Para finalizar este artigo, não poderíamos deixar de fazer uma pequena crítica: parece que Pepetela, visando conquistar o gosto dos leitores, ousou optar pelo gênero que aparenta o policial, e que, no entanto, acaba mesmo retornando ao seu estilo particular de denúncias sociais e políticas. Daí porque, provavelmente, Jaime Bunda, Agente Secreto, tenha obtido êxito. O mesmo, no entanto, não podemos dizer do segundo livro da «série» (sim, pois que já nos parece uma série!) Jaime Bunda, publicado recentemente com o título Jaime Bunda e a Morte do Americano.

Se o volume de estréia foi pitoresco e inovador, apresentando uma personagem kitsch, mexendo com os nervos do leitor diante das demissões dos narradores, da confusão dos gêneros, dos desvios do crime que pretextou a obra, das entrelinhas permitidas e dos conflitos arrematados, o mesmo não podemos dizer do segundo, mais próximo de produção para cumprimento contratual com editoras que exigem publicações mínimas anuais que para obra de valor estético. O próprio personagem Jaime Bunda, aqui, perde o ar parvalhão que tanto o caracterizou no primeiro livro para assumir ares respeitosos que beiram o formalismo e deformam sua personalidade original. Do mesmo modo, as denúncias e ironias, tão refinadas em Jaime Bunda, Agente Secreto, tornam-se, em Jaime Bunda e a Morte do Americano, escassas e insossas, revelando uma trama extremamente linear e, por isso, altamente previsível, fatores que lhe retiram grande parte do valor estético. Não fosse a publicação de um pretenso «repeteco», os aplausos a Jaime Bunda seriam maiores.

Referências bibliográficas:

ABDALA JUNIOR, B. De Vôos e Ilhas: Literatura e Comunitarismos. Cotia: Ateliê Editorial, 2003.

HUTCHEON, L. Poética do Pós-Modernismo. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

KOTHE, F. R. A Narrativa Trivial. Brasília: Editora UNB, 1994.

NUTO, J. V. C. Grotesco e Paródia em Viva o Povo Brasileiro. Internet, http://members.tripod.com/~lfilipe/grotesco.html, 15 de dezembro de 2003.

PEPETELA. Jaime Bunda, Agente Secreto. 5. ed. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002.

Jaime Bunda e a Morte do Americano. 1. ed. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2003.

RIBAS, Ó. Dicionário de Regionalismos Angolanos. Lisboa: Contemporânea, 1994.

SECCO, C. L. T. R. A Magia das Letras Africanas. Rio de Janeiro: ABE Graph Editora, 2003.