UEPB - Vestibular 2012 - Resumo e comentários da obras indicadas

Confira o resumo e comentários das obras Os ratos, de Dyonélio Machado; Contos Negreiros, de Marcelino Freire; Antologia Poética - Carlos Drummond de Andrade e Marias - Janaína Azevedo indicadas para o Vestibular 2012 da UEPB

Os ratos, de Dyonélio Machado

Análise da obra

Publicado em 1935, Os Ratos, do escritor gaúcho Dyonélio Machado, tornou-se uma das obras mais influentes da 2ª geração do Modernismo, além de ter sido homenageada com o prêmio Machado de Assis.

Sua narrativa é apresentada numa linguagem simples, direta, rápida, com um tal domínio da expectativa do leitor que lembra o trabalho de Camilo Castelo Branco em Amor de Perdição. A preocupação com a boa linguagem não afasta o escritor da realidade urbana. Assim, os diálogos entre as personagens retratam a língua coloquial, sem preocupação de formalidade. Cada um dos 28 capítulos tem sua própria célula de suspense, que será resolvida no máximo no seguinte, em que obrigatoriamente surgirá outra.

Há na obra uma cruel crítica à maneira como o dinheiro acabou se tornando a mola propulsora das relações sociais, comandando a respeitabilidade, a ética, a dignidade e até injusta e facilmente, quando não arbitrária e despoticamente, degradando-as, detonando-as. Em suma, todos esses aspectos fazem de Os Ratos uma das obras mais nobres de nossa literatura.

O título Os Ratos é uma referência ao drama psicológico de Naziazeno Barbosa, protagonista da história, depois de ter conseguido o dinheiro para saldar a dívida com o leiteiro. Naziazeno, meio dormindo, tem o seguinte pesadelo: os ratos estão roendo o dinheiro que ele deixara à disposição do leiteiro sobre a mesa da cozinha.

Os ratos, ganhando a possibilidade de roerem dinheiro, simbolizam o consumismo da cidade grande, o câncer que aniquila os sonhos dos proletários, a desvalorização da solidariedade em função de padrões materiais que elevam o dinheiro à condição meta principal a ser alcançada.

O desenrolar do drama do funcionário público endividado e ainda com vergonha de olhar os credores que passam no cotidiano atravessa os capítulos e nos traspassa de angústia. O dinheiro do leite, a doença do menino, a fome do protagonista... Enfim, um empréstimo. Percebemos, na vida de Naziazeno, que ter conseguido o dinheiro para quitar a conta do leite é apenas o início de uma nova dívida, a expectativa de mais um dia caminhando em busca de uma solução.

O livro Os ratos inicia com a advertência do leiteiro de que cortará o fornecimento de leite caso não receba o pagamento até o dia seguinte. Apenas vinte e quatro horas... Naziazeno sente o desespero da mulher, a vergonha diante dos olhares da vizinhança que presenciam o ultimato.

O leitor é invadido pela espiral das angústias do fim do romance. O descanso de Naziazeno não é verdadeiro e não convence. Sabemos que amanhecerão novas inquietações e dívidas para o funcionário, novas cobranças para o chefe de família e novos olhares reprovadores.

A mediocridade do papel do protagonista no mundo se contrasta com a forma brilhante como Dyonélio Machado desenvolve a trama e nos envolve no drama do protagonista com diretas reflexões inseridas em nossas rotinas. A reviravolta na narrativa ocorre quando, ao anoitecer, pensamos que o caso está encerrado e percebemos que as vivências ecoam e retornam em ousadas lembranças dos movimentos do dia sob novos olhares. Sentimos com força a angústia de ser e de permanecer próximo do protagonista do escrito literário.

Os Ratos se enquadram, dentro do movimento modernista brasileiro, no chamado Romance de 30: denominação dada a um conjunto de obras de ficção produzidas no Brasil a partir de 1928, ano de publicação de A Bagaceira, de José Américo de Almeida.

A obra é um romance social por excelência. O drama urbano da classe média baixa encontra protótipo perfeito em Naziazeno Barbosa, o herói fragilizado pela preocupação de cumprir um papel social no caos urbano em que vive.

 

Tempo

Tempo cronólogico - Em Os Ratos, as ações dos personagens acontecem no tempo cronológico ou linear, marcado pela passagem das horas, durante um dia de peregrinação de Naziazeno. O passar das horas é uma preocupação cruciante para o herói que não pode voltar para casa sem o dinheiro do leiteiro.

Tempo Psicológico - O tempo psicológico (interior, aquele que transcorre dentro dos personagens, marcado pela ação da memória, das reflexões) é valorizado principalmente nos últimos capítulos do livro.

O romance de Dyonélio provoca logo a sensação, se colocado no seu contexto histórico, de excesso ou até, deslocando a observação, de insuficiência. Digamos que o autor, ao lançar mão à tarefa compositiva, dispunha objetivamente de duas formas romanescas dominantes: por um lado, o romance documentário, em pleno auge na época de envolvimento intelectual com a realidade do País, e pelo outro o romance psicológico, tributário da revisão intuicionista da categoria temporal, descentrando o enfoque narrativo de fora para dentro do sujeito. O narrador dominante focaliza do externo os acontecimentos, fornecendo uma impressão de materialidade real, histórica dos fatos: seu discurso é seco, objetivo, documentário. Seu posicionamento é o de um cronista das desventuras do modesto funcionário e, como bom cronista, remete quase obsessivamente para a categoria do tempo, um tempo inexorável cuja transposição discursiva gera e dilata o sentimento de ansiedade do personagem: O dia continuou... O dia não parou (OR8, p.65): a representação do dia de Naziazeno é assim marcada por referências diretas a inúmeros relógios que fornecem indicações temporais. É importante notar sempre o jogo de contrastes: o protagonista não tem relógio (já o empenhou) e a partir dessas indicações às vezes vagas - outras vezes empíricas, como a passagem de um bonde etc. - ele depreende uma sua noção aproximativa de tempo.

Desse recorte também se delineiam dois mundos a confronto, um dominado pelo tempo externo, convencional dos relógios que se impõe definitivamente como emblema técnico, do moderno e urbano a partir das últimas décadas do século XIX (e é o de que o narrador dá conta), outro que é o tempo interno à variabilidade dos estados psicológicos que é uma projeção imperfeita (do ponto de vista do artifício) e humana do primeiro (e é o tempo vivencial de Naziazeno).

 

Cenário: O cenário de Os Ratos é Porto Alegre.

Foco narrativo: O romance Os Ratos é narrado na terceira pessoa (narrador onisciente). O narrador (o próprio autor) relata as ações de todas as personagens, concentrando suas observações no íntimo do herói, revelando ao leitor as suas angústias interiores e psicológicas.

 

Temática

Luta por dinheiro - O tema principal de Os Ratos é a luta desesperada de Naziazeno para conseguir, em um dia, dentro de uma cidade grande e insensível, dinheiro para saldar uma dívida com o leiteiro. Mistura-se a essa luta a ansiedade, o desespero, a sensação de fragilidade e inutilidade do ser humano que não tem recursos sequer para garantir o sustento digno da família.

Lembrança do passado - O passado, principalmente a infância, mistura-se ao presente de Naziazeno Barbosa. O enredo é arquitetado numa superposição de planos: os pensamentos e reminiscências do herói em confronto com a crueza da realidade citadina. Presente e passado alternam-se na composição da história.

 

Drama

O drama principal do romance não se concentra no leiteiro, nem nos ratos ou no dinheiro: concentra-se na dificuldade para conseguir a quantia desejada, respeitando-se o limite de tempo e espaço.

 

Personagens

As personagens criadas por Dyonélio Machado são esféricas, densas. Não há preocupação com aspectos exteriores, aflorando o lado íntimo ou psicológico.

Naziazeno é um herói impotente diante de uma situação aparentemente simples: conseguir dinheiro para garantir o bem-estar da família (principalmente do filho pequeno). É o homem comum rebaixado à condição de miserável, exposto à humilhação e ao anonimato que caracterizam o viver das aglomerações urbanas.

Naziazeno Barbosa - Modesto funcionário público, Naziazeno é o herói da história. Fragilizado pela condição de penúria material, atormentado pela necessidade de saldar uma dívida com o leiteiro.

Adelaide - Dona de casa, esposa de Naziazeno. Convive, diariamente, com as dificuldades de um orçamento familiar minguado, insuficiente para o sustento digno da família.

Mainho - Filho de Naziazeno e Adelaide.

Dr. Romeiro - Diretor da repartição pública onde Naziazeno trabalha. Há suspeitas de corrupção sobre ele. Certa vez, emprestou dinheiro a Naziazeno.

Otávio Conti - Advogado.

Dr. Mondina - Falso advogado; bajulado por conta do dinheiro de que dispõe. Foi quem desembolsou o dinheiro para o grupo (Naziazeno, Alcides e Duque), permitindo ao herói voltar para casa com a quantia devida ao leiteiro.

Rocco - Agiota para quem Alcides já deve uma grana. Nega-se a fazer novo empréstimo.

Fernandes - Agiota que se nega a emprestar dinheiro (cem mil réis) a Duque.

Assunção - Agiota da Rua Nova. Nega-se a emprestar dinheiro.

Alcides - Amigo de Naziazeno, solidário com ele na pobreza e nas dificuldades, fazendo tudo para ajudá-lo.

Duque - Amigo de Naziazeno e de Alcides. Inspira confiança porque tem sempre uma solução para os problemas que envolvem dinheiro.

Fraga - Vizinho de Naziazeno. Parece ter uma vida bem arrumada, não precisando passar pelos vexames financeiros por que passa o protagonista.

Costa Miranda - Amigo de Naziazeno; emprestou-lhe, na rua, cinco mil réis para o almoço.

Martinez - Dono da loja de penhores onde o anel de Alcides estava guardado. Mostrou boa vontade e foi, à noite, abrir a loja para devolver a jóia.

Dupasquier - Dono de uma joalheria. Examina o anel de Alcides e oferece trezentos e cinquenta mil réis. Quando descobre que a proposta é de penhor, desiste do negócio.

 

Enredo

PARTE I

Capítulos 1 e 2

Através do diálogo entre Naziazeno Barbosa e sua esposa, Adelaide, o autor mostra a situação da família: por falta de pagamento, já suspenderam o fornecimento de manteiga e, agora, o leiteiro ameaça não trazer o leite das crianças. Enquanto a mulher argumenta que é possível viver sem gelo e sem manteiga, mas sem o leite das crianças, não, Naziazeno acha que a situação é de considerar o leite como supérfluo.

Aparece o vizinho Fraga. Naziazeno tem a impressão de que ele possui uma vida bem arrumada. O leiteiro, o padeiro, depois de fazerem a distribuição dos seus produtos, ainda conversam um pouco com o Fraga. Ainda no meio do mês, ele já propõe pagamento aos dois, como se não tivesse problemas financeiros.

Pensamentos e recordações de Naziazeno enquanto perfaz o caminho para o trabalho, de bonde. A impressão que lhe causam os companheiros de viagem. A recordação de que a mulher, Adelaide, tem um ar de fragilidade, de fraqueza que mantém acesa a chama da voluptuosidade. Mas, na vida prática, essa fragilidade atrapalha.

O segundo capítulo encerra-se com o pensamento obsessivo de Naziazeno no leiteiro, na frase que o atormenta: "Lhe dou mais um dia".

 

Capítulo 3

Naziazeno, depois que desce do bonde, bola um plano para arranjar o dinheiro para o leiteiro. Vai pedi-lo emprestado ao diretor. Já uma vez fez isso, quando da doença do filho, para pagar os remédios. O diretor emprestou. Mas muitos riram dessa ingenuidade. Ter coragem de emprestar dinheiro para o Naziazeno? Só tinha uma explicação: era novato, não conhecia todo o pessoal. Naziazeno pagou o empréstimo, mas ainda faltaram alguns trocados que o diretor perdoou, não fez questão.

Enquanto espera, fica desanimado. Claro que o diretor não vai emprestar-lhe o dinheiro. Que história vai-lhe contar? A verdadeira, a do leiteiro? Ou outra vez a história da doença do filho?

 

Capítulo 4

Naziazeno cria coragem e expõe o problema ao diretor. Ele lhe empresta o dinheiro: sessenta mil réis (deve apenas cinqüenta e três ao leiteiro). Volta para casa e entrega o dinheiro à mulher, ocultando-lhe o modo como o conseguiu.

Tudo imaginação. O diretor sequer chegou à repartição. Naziazeno não consegue trabalhar. Finalmente chegou o diretor. É o momento de pedir-lhe o empréstimo.

 

Capítulo 5

A confiança de obter o empréstimo com o diretor começa a abalar-se. Enquanto o diretor demora-se na secretaria, Naziazeno vai até o centro da cidade. Vai à procura do Duque - ele tem sempre uma solução mágica para os problemas de dinheiro. Chega ao mercado e não encontra o Duque nos lugares habituais. Resolve esperar. Aparece o Alcides.

 

Capítulo 6

No Café, ao lado de Alcides, enquanto espera o Duque, Naziazeno vai falando das impressões que tem das pessoas. Cansa-se de esperar o Duque no Café. Relembra um caso antigo, da infância, quando estivera doente, quase à morte. A mãe fizera uma promessa: Naziazeno teria que andar um ano vestido de Santo Antônio. Foi um vexame.

Naziazeno desiste de esperar o Duque. Vai para a repartição. O Alcides sugere uma visita aos cafés do centro. Vem-lhe a idéia de inutilidade, de falta de aptidão para ganhar dinheiro. O Duque consegue cavar, fazer um "biscate", arranjar dinheiro. Ele não. Por quê?

Alcides arma um plano: jogar no bicho. Com que dinheiro? Naziazeno deve voltar à repartição e "dar a facada" no diretor. Ele, Alcides, se encarregará do jogo.

 

Capítulo 7

Enquanto espera o diretor, Naziazeno perde-se em pensamentos e recordações. Finalmente, o "homem" chega. A esperança ressurge. "O senhor pensa que eu tenho alguma fábrica de dinheiro? Quando o seu filho esteve doente, eu o ajudei como pude. Não me peça mais nada. Não me encarregue de pagar as suas contas: já tenho as minhas".

O diretor vai embora, os funcionários debandam. Naziazeno também.

Depois de tudo, ficou-lhe aquela frase na cabeça: "Não lhe pago as dívidas". Como contar tudo aquilo ao Alcides? Este plano fracassou. Como idealizar outro? Tem uma preguiça doentia. E o pior é que o sol já vai virando para a tarde. Meio dia perdido.

Urge pensar numa solução. Como conseguir sessenta mil réis? Pensa em renunciar. Mas é preciso entregar o dinheiro ao leiteiro.

 

Capítulo 8

Alcides propõe que Naziazeno vá atrás do Andrade, cobrar-lhe uma dívida. É o resto de uma comissão. É ali na rua Coronel Carvalho. Naziazeno topa. O calor infernal da tarde mantém o seu corpo suado. À medida que se aproxima da casa, vai ficando gelado. Deve ser porque ainda não almoçou. Ou seria a expectativa? O número da casa do Andrade está próximo. Melhor seria não o encontrar. A rua é de gente rica. Claro que o Andrade tem cem mil réis. De repente, o número procurado. Mas é o final da rua. A casinha em que Andrade mora é humilde. A esperança de conseguir dinheiro ali diminui.

 

Capítulo 9

Naziazeno bate à porta de Andrade. Ele abre. Explica tudo: não deve exatamente ao Alcides (que ele conhece como Kônrad). Há uma comissão, sim, duma transação de um automóvel, mas a parte que Andrade lhe devia já pagou. Os outros cem mil réis, Alcides tem que recebê-los de Mister Rees. Naziazeno compreende tudo. Despede-se.

 

Capítulo 10

Naziazeno, enquanto volta a pé ao encontro de Alcides, vai pensando. Era mais ou menos uma hora da tarde. Se tivesse conseguido o dinheiro com o Andrade, a primeira providência teria sido almoçar. Agora, é encontrar o Alcides e ir atrás do Mister Rees, um alto funcionário bancário.

Alcides não se encontra no café. Naziazeno procura-o noutros cafés ali perto. Nada. Tem, então, uma idéia: o Banco é ali perto. Por que não dar um pulinho até lá? Com certeza, Alcides vai aprovar essa idéia. Ao entrar no banco, fica em dúvida. Teria mesmo direito de cobrar Mister Rees? E se fosse "armação" do Andrade?

Um alívio: Mister Rees está para o Rio de Janeiro. Agora, é tentar almoçar e partir para outro plano. Quem sabe o Duque esteja no Restaurante dos Operários? O problema é conseguir cinco mil réis para o almoço. Como? Talvez no escritório do Dr. Conti.

 

Capítulo 11

Naziazeno, depois de tentar falar com o Dr. Otávio Conti (na verdade, nem chegou a encontrá-lo), desiste. Voltando, encontra um seu conhecido, o Costa Miranda.

Foi a salvação: Costa empresta-lhe cinco mil réis para o almoço.

 

Capítulo 12

Naziazeno, com os cinco mil réis no bolso, fica indeciso: vai almoçar no Restaurante dos Operários ou em frege do mercado? De repente, uma idéia nova perturba-o: e se tentasse a sorte? Por que não? Está com o estômago oco, mas não pode perder essa oportunidade. Ele vê o dinheiro multiplicando-se e, em função disso, imagina a volta feliz para casa. Com este pensamento, dirige-se à tabacaria, onde, nos fundos, há um salão de jogos. Entra, vê o guichê do "bicho" vazio, dirige-se para o salão de onde lhe chega aos ouvidos um ruído fininho de fichas.

 

Capítulo 13

Naziazeno, nervosamente, tira os cinco mil réis do bolso e deposita a cédula no número 28. E o milagre acontece, tudo resolvido assim num segundo: os cinco mil réis transformaram-se em cento e setenta e cinco. Agora, é comprar mais fichas, fazer um jogo estudado. Os lances sucedem-se. Naziazeno ora ganha, ora perde. As fichas, pouco a pouco, vão sumindo das suas mãos. Tem agora duas fichas. Toma uma resolução súbita: aposta todas num único número. E perde.

 

Capítulo 14

Naziazeno sai da tabacaria, ganha a rua, e dirige-se a uma grande casa atacadista. Àquela hora, o comércio está fechando as portas. Um homem com cara de preocupação está fechando o armazém. Naziazeno, então, dirige-lhe a palavra:

- Queria pedir-lhe mais um favor. Só a grande necessidade me traz aqui na sua casa, antes de resgatar aquele vale. Não tenho a quem recorrer e preciso com urgência de sessenta mil réis.

- Não me é possível.

- Assino-lhe um vale. Venho pagar no fim do mês.

- Impossível.

Naziazeno insiste. Nada. Os dois seguem pela mesma rua, e Naziazeno vai-lhe falando de dificuldades, contando-lhe coisas, insistindo no empréstimo. O outro entra no bonde e vai embora.

 

PARTE II

Capítulo 15

Naziazeno caminha pela rua deserta. As casas estão todas fechadas. E assim, fechadas, crescem de importância e de mistério. Seu destino é o mercado. Enquanto anda, vai observando a rua, as casas, a escassez de automóveis, o silêncio. E a silhueta do mercado ao longe, para onde se dirige, vai-se aproximando à medida que caminha.

 

Capítulo 16

Naziazeno chega ao mercado. Num dos cafés, o Alcides chama-o. Conversam sobre o que se fez naquele dia. Naziazeno conta-lhe sobre o Andrade e sobre o jogo na tabacaria. O Duque, finalmente, está ali, em outra mesa, conversando com um indivíduo velhusco.

Naziazeno fala da fome, do dia inteiro sem comer. Alcides paga-lhe um leite. Exposto o problema de Naziazeno, Duque sugere um empréstimo com um agiota - o mesmo para quem Alcides já deve uma grana. O próprio Alcides encarrega-se de ir atrás do Rocco. No relógio da Prefeitura, já são seis e vinte.

 

Capítulo 17

Os três (Naziazeno, Duque e o cidadão velhusco (o "doutor" Mondina) sentam-se num café, à espera de Alcides (que foi ao agiota). O Alcides volta. O agiota suspendeu temporariamente os empréstimos.

Duque deixa Alcides e Mondina no café e sai com o Naziazeno. Seguem em silêncio. Assim andando, ao lado do amigo, Naziazeno sente-se mais confiante. Vão à casa de seu Fernandes - um agiota.

- Nós precisamos com urgência de cem mil réis.

- Impossível.

Duque arrasta o amigo a outro agiota. Eles vão agora à rua Nova, ao agiota Assunção. Nova negativa. Retornam ao café.

A ideia é abordar o próprio "dr." Mondina, o falso advogado. De início, Mondina nega-se. Mas surge a idéia de tirar um anel de Alcides (anel de bacharel) que está penhorado por um valor muito baixo. Mondina anima-se. Será que ainda dá tempo?

 

Capítulo 18

Os quatro (Naziazeno, Duque, Alcides e Mondina) vão à casa de penhores. Será que já está fechada?

Estava. E agora? Alcides propõe: dará a cautela do penhor ao Mondina. No dia seguinte, ele voltará ali e recuperará o anel. Mas o dinheiro tem que ser dado agora. Mondina parece pressentir o "truque", o "golpe". Alcides tem cara de vigarista. Duque intervém: não pode ser assim. Vamos encontrar outra solução. Alcides sugere: e se fôssemos à casa de Martinez, o dono da loja de penhores? Telefonam, e o seu Martinez diz que pode recebê-los em sua casa. No percurso para a casa de Martinez, Naziazeno vai pensando. Será que o homem reconhece Alcides? E o anel? Será que se lembra do Anel? Chegam finalmente.

 

Capítulo 19

Martinez, depois de ouvir Alcides sobre a proposta de resgatar o anel penhorado, pergunta pela cautela:

- O senhor trouxe a cautela aí?

Alcides anda sempre com os seus papéis. Martinez examina o papel e, depois, devolve-o. Depois de algum tempo, talvez consultando a esposa, Martinez diz que sim, que é possível ir à loja resgatar o anel.

A caminhada é feita em silêncio. Naziazeno conscientiza-se de que já é noite, embora lá em cima, no céu, ainda seja possível ver uma arzinho do dia.

Chegam. Martinez abre a porta, acende a luz. Convida-os a entrar. Com a cautela na mão, o cofre aberto, faz a procuração. Pronto. Achou o anel. Mondina já havia passado o dinheiro da penhora ao Alcides, que o passa agora ao senhor Martinez. Ele confere. Entrega, finalmente, o anel. Alcides passa-o a Mondina, que se detém a examinar a jóia.

Martinez toma o rumo da praça, de volta para casa. Despede-se ali de Alcides, de Mondina, de Duque e de Naziazeno.

 

Capítulo 20

Depois que Martinez vai embora, o grupo fica parado, sem saber o que fazer. Àquela hora, tudo está fechado. Duque sugere uma visita ao Dupasquier da joalheria. Por sorte, a vitrina está aberta. Entram. Dupasquier, meio desconfiado, ouve a proposta, analisa detidamente o anel, pergunta quanto Alcides quer por ele.

- Ele não deixa por menos de quinhentos mil réis - sugere Duque.

- Não dou nem quatrocentos.

- Quatrocentos e cinqüenta - solicita Duque.

- Não. Não dou mais do que trezentos e cinqüenta mil réis.

Aceitaram. Mas quando falaram que era penhor, Dupasquier desistiu. O grupo não sabe o que fazer. Alcides sugere um dos agiotas, Assunção e Zeferino. Duque opina:

- Vamos combinar isso num café.

A proposta do Duque é a seguinte: entregar o anel ao "dr." Mondina como garantia de mais cento e vinte mil réis. Assim, o anel está empenhado por trezentos mil. No dia seguinte, ele e Alcides irão procurar Mondina, empenharão o anel por trezentos mil réis e, então, devolverão o dinheiro.

 

Capítulo 21

Naziazeno chega a casa, entra. São nove horas da noite. Adelaide estava preocupada. Todo o dia o marido ficara ausente. Ele mostra os embrulhos. Trouxera-lhe o sapato que estava no conserto. Para surpresa de Adelaide, ele trouxera também manteiga, queijo e dois leõezinhos de borracha para o filho, Mainho.

Enquanto esquenta a comida, Adelaide pergunta:

- Onde é que arranjaste o dinheiro? Conseguiste "tudo"?

Ele diz que sim. Conseguiu por intermédio do Alcides e do Duque. Cinqüenta e quatro mil e setecentos. Põe todo o dinheiro em cima da mesa. Está com sono. Separa os cinqüenta e três mil exatos do leiteiro. Guarda o resto no bolso do colete. Está com sono. São nove e meia da noite.

 

Capítulo 22

Naziazeno imagina a reação do leiteiro ao receber, na manhã seguinte, o dinheiro. Vem à tona, na conversa com Adelaide, a situação do Dr. Romeiro, diretor da repartição em que Naziazeno trabalha.

Ouve-se um baque lá fora. Eles levantam a cabeça, atentos. É o portãozinho. Naziazeno vai fechá-lo. Quando volta, reclama do frio.

- Por que tu não vais deitar?

- Não quero dormir com o estômago muito cheio.

Surge a preocupação de levantar cedo no outro dia para entregar, em mãos, o dinheiro ao leiteiro.

- Porque não botava em cima da mesa da cozinha, junto com a panela do leite?

Naziazeno aprova a idéia. E fica pensando na surpresa do leiteiro ao encontrar o dinheiro.

 

Capítulo 23

Adelaide acabara de pôr a panela do leite na ponta da mesa. Ao lado da panela, Naziazeno pusera o dinheiro para o leiteiro. Está preocupado. Deveria por algum peso sobre as notas?

- Tu achas necessário? Não há vento aqui dentro.

- Não, não é preciso.

Naziazeno não consegue abandonar a cozinha.

É interessante: passou-lhe o sono agora. É capaz de ler um pouco... Mas muda de idéia: não lhe apetece agora nenhuma leitura... de nenhuma daquelas coisas que poderia ler...

Naziazeno acabou indo deitar-se. A mulher dorme, mas ele fica a recordar a "maratona" por que teve de passar para conseguir o dinheiro. Está acordado. Entretanto queria dormir. "Tem necessidade de um sono longo, longo...

Fica a ouvir os barulhos da noite: o vento... o bonde passando... o bonde voltando... de novo o vento... Precisa dormir, descansar a cabeça.

Serão onze horas? Meia-noite?

Uma pancada, longe, sonora, indica uma hora.

Já lhe parece um século aquela noite e é apenas uma hora!...

Precisa dormir, precisa descansar. Tem de aproveitar esse resto de noite. É estranho: um cansaço tão grande, e não conseguir conciliar o sono...

 

Capítulo 24

A falta de sono perturba Naziazeno. A esposa dorme quieta. O filho, Mainho, também. O pensamento fica divagando por várias coisas: a repartição, o seu trabalho, a luz que não o deixa dormir, o médico de Mainho, o "dr." Mondina. Pensa em Alcides, no anel que o "desapertou". "Uma providência, aquele anel". Vem-lhe, na insônia, uma superposição vaga de figuras: o Assunção... Fernandes... Martinez... Duque... Duque arrasta-o de uma lado para outro. Tem um sobressalto: um estalo para o lado da frente. O filho chega também a assustar-se. Adelaide, meio dormindo, nana-o.

"Naziazeno não quis deixar ver que estava acordado".

 

Capítulo 25

A insônia continua. Naziazeno põe-se a pensar em tudo: a chegada a casa... o jantar tranqüilo, como ele sonhara... o dinheiro ali na mesa, acariciado pelo seu olhar... a idéia de deixá-lo ali, sobre a mesa, evitando o confronto direto com o leiteiro. Se houvesse o confronto, viria inimizade. Assim, continuariam amigos.

E o sono? "Ainda não dormiu! Só ele! Só ele sem dormir..."

Procura não pensar em nada, manter os olhos fechados, buscar tranqüilidade.

 

Capítulo 26

A insônia persegue Naziazeno. Por estar embrulhado, o calor aumenta. "Sente que vai ficando esperto outra vez".

Pensa no bonde. A recordação passeia por cenas e pessoas relacionadas à maratona do dia: Duque, Alcides, Mondina, o jornal... os "finalmente" da transação com o Mondina. Alcides está amuado. Hesita em passar o anel para o Duque. Finalmente Mondina tira o dinheiro do bolso. Precisa trocá-lo em notas menores, primeiro no café, depois no Bolão. Pronto: transação encerrada. Duque passa-lhe o dinheiro: sessenta e cinco mil réis.

Naziazeno toma o bonde para casa. Tem de passar no sapateiro para pegar o sapato de Adelaide. Pega. A chegada, enfim, a casa. Adelaide vem até ele.

 

Capítulo 27

"Outra vez um silêncio súbito". Naziazeno fica em dúvida: teria dormido? Passou toda a noite acordado? O ar tem um chiado... Fica muito tempo a ouvir esse chiado sonoro, metálico, fininho.

Agora, distingue nitidamente dois barulhos: o da respiração do filho e aquele chiado lá fora.

De repente, um barulho no forro... Ratos... São ratos. Fica esperando o barulho dos ratos na cozinha. O barulho aumentou: em vários pontos, no forro, o rufar... A casa está cheia de ratos!

"O chiado desapareceu. Agora, é um silêncio e os ratos..."

Há um roer ali perto. O que estarão comendo? É isto! "Os ratos vão roer - já roeram! - todo o dinheiro!..."

Tem um grande desespero. É preciso levantar-se. Mas o barulho cessou. Há só o silêncio. Será que ratos roem dinheiro? É melhor perguntar à mulher. Absurdo. Claro que ratos não roem dinheiro! "Vê os ninhos, os papéis picados, miudinhos, picadinhos... uma poeira".

"Vai levantar". Mas onde achar forças? "Está com sono. Mas é preciso reagir". Parece ouvir a voz da mulher: "Eles roem papel. Dinheiro é um papel engraxado..."

O barulho sumiu. Cessou também o roer. Decerto os ratos já foram embora. Está amanhecendo.

 

Capítulo 28

Ao redor de Naziazeno, as coisas vão ficando mais apagadas. "Depois duma trégua, os ratos voltaram a roer". Com certeza estão roendo a madeira. Seria mesmo madeira? "Talvez depois de consumido o dinheiro, eles passem a roer, a roer a tábua da mesa..."

Agora os ruídos confundem-se. "Está exausto". Precisa dormir, entregar-se.

"Não sabe que horas são".

"Mas que é isso?!... Um baque?"

"Um baque brusco do portão. Uma volta sem cuidado da chave. A porta que se abre com força, arrastando. Mas um breve silêncio, como que uma suspensão... Depois, ele ouve que lhe despejam (o leiteiro tinha, tinha ameaçado cortar-lhe o leite...) que lhe despejam festivamente o leite. (O jorro é forte, certamente vem de muito alto...) - Fecham furtivamente a porta... Escapam passos leves pelo pátio... Nem se ouve o portão bater...

E ele dorme."

 

 

Contos Negreiros, de Marcelino Freire

Na obra Contos Negreiros, Marcelino Freire aborda temas delicados e polêmicos como racismo, turismo sexual, tráfico de órgãos e homossexualismo. A paisagem urbana é o cenário principal de seus cantos (contos). Algumas paisagens de importantes centros urbanos, como Recife e São Paulo, como as zonas de prostituição, morros, favelas e pontos turísticos, tornam-se palcos para a exposição de uma realidade complexa e miserável, vivida por prostitutas, “bichas”, negros, índios, além de abrigar traficantes de órgãos e de drogas, e turistas sexuais. Marcelino Freire apresenta 16 narrativas (contos e crônicas) que procuram aproximar-se de uma linguagem coloquial, memorial e, às vezes, musical, baseada nas influências deixadas pela oralidade das ladainhas e canções nordestinas. Ele escreve a partir do ponto de vista de brasileiros miseráveis ou mortos-vivos, que, como “zumbis”, vendem de tudo para sobreviver: drogas, o corpo, o rim. Sua criação literária passa pela valorização da memória, oriunda das heranças culturais – a cultura popular nordestina – e a percepção de um tempo presente. As experiências ocorridas no dia-a-dia das metrópoles brasileiras apresentam testemunhos de sujeitos que estão à margem da sociedade contemporânea. Sujeitos sem voz, sem espaços para o testemunho, vistos quase como objetos ou tratados como objetos pela mídia e por toda sociedade.

Embora o título do livro e a capa do mesmo, com uma imagem de um homem negro (possivelmente escravo), indiquem, num primeiro momento, que as narrativas são dedicadas a histórias sobre o negro, o autor não parte do preconceito ao negro ou de sua realidade de exclusão para compor sua obra. Ela é composta pela experiência de exclusão de todos os “mortos-vivos” que perambulam pelas ruas dos grandes centros do país, independentemente da cor da pele.

A narração de uma experiência guarda algo da intensidade do vivido, seja por aqueles que narram sua própria experiência ou por aqueles narradores observadores que narram a experiência do outro. Nos Contos Negreiros, são narrados acontecimentos comuns à vida de sujeitos comuns. Fatos do dia-a-dia narrados por seus protagonistas, aqueles que sempre têm suas vozes emudecidas pelos próprios acontecimentos dos quais são autores. Para tanto, Freire utiliza-se, como já citado, da oralidade, da memória, ora do relato objetivo, ora do relato subjetivo, para desenvolver testemunhos que não visam formar uma identidade, mas apresentar as condições extremas vividas em plena contemporaneidade. Tais condições são encontradas no “canto” Nação Zumbi, que apresenta a história de um personagem sem nome, que estava prestes a fechar um negócio: a venda do próprio rim para traficantes de órgãos. O personagem narra com indignação e frustração a interrupção da compra, a impossibilidade do fechamento do negócio. A polícia descobre a trama e o desfecho da história é a afirmação: “sei que vão encher meu rim de soco”. Ele acreditava que a venda do seu órgão era uma forma de mudar de vida, de “livrar sua barriga da miséria”. O texto mostra a pobreza, o comércio ilegal, o corpo como moeda, como pode ser lido na seguinte passagem do conto:

“E o rim não é meu? Logo eu que ia ganhar dez mil, ia ganhar. Tinha até marcado uma feijoada pra quando eu voltar, uma feijoada. E roda de samba pra gente rodar (...) E o rim não é meu, saravá?

Quem me deu não foi Aquele-lá-de-cima, Meu Deus, Jesus e Oxalá? (...) O esquema é bacana. Os caras chegam aqui levam a gente para Luanda ou Pretória. (...) Puta oportunidade só uma vez na vida (...)”.

Na história acima, o protagonista teria que ir a Luanda ou Pretória para fazer sua cirurgia. As metrópoles, desde o período moderno, surgem como centros para a formação cultural, intelectual e profissional do homem que, então, através do trabalho, gera o progresso. No entanto, elas tornaram-se também o cenário mais comum dos processos ilícitos construídos pela humanidade: tráfico, seqüestro, violência, roubos. O autor abriga seus personagens dentro das zonas mais inóspitas da cidade, mas sem deixar de produzir um fascínio nos próprios personagens (e nele mesmo). O testemunho representa as experiências de um coletivo que as torna, sobretudo, comunicáveis. Algo que, embora possa virar notícia, não torna a experiência uma mensagem a ser legitimada. Segundo Beatriz Sarlo, para existir a experiência é necessário que a narração esteja unida ao corpo e é exatamente esse tipo de narração que é feito pelos personagens dos Contos Negreiros, pois suas experiências são contadas com os próprios corpos e através da memória do seu autor. As experiências do nordestino que muda para a cidade grande oferecem a Marcelino Freire uma série de acontecimentos e histórias que são transformadas em relatos do cotidiano dos personagens excluídos.

Os testemunhos dos personagens apresentam a vida do citadino, em particular daqueles que habitam no submundo da cidade, vivendo à margem, mas que ganham voz e corpo nas narrativas do autor pernambucano. Os sujeitos-testemunhas transmitem suas experiências fatídicas, entretanto, esses personagens não são mais importantes que os efeitos dos seus testemunhos ou que as mensagens transmitidas pelos seus relatos. Para Beatriz Sarlo: “Em suma, não se pode representar tudo o que a experiência foi para o sujeito, pois se trata de uma matéria prima em que o sujeito-testemunha é menos importante que os efeitos morais de seu discurso. Não é o sujeito que se restaura a si mesmo no testemunho do campo, mas é uma dimensão coletiva que, por ocasião e imperativo moral, se desprende do que o testemunho transmite”.

O testemunho na obra de Freire nasce de um anseio subjetivo, mas que expressa situações limites vivenciadas por um coletivo, revelando, portanto, o cenário que compõe a vida contemporânea nas cidades brasileiras, embora pareça distante e imperceptível à nossa sociedade. As experiências dos seus personagens-testemunhas são comunicadas a partir de uma linguagem que beira a oralidade, vinda das ruas para dentro do texto escrito. O relato testemunhal dos personagens-excluídos de Marcelino Freire nos permite enxergar com mais lucidez a realidade vivenciada por eles e que apontam para uma visão realista e literariamente ligada ao contemporâneo.

Um dos textos mais criativos do livro é "Linha de tiro", diálogo que se repete indefinidamente, como aquelas figuras dentro de figuras dentro de figuras, com as quais Magrite brincava com grande habilidade. A conversa é um assalto em que a mulher acha que o assaltante lhe quer vender chocolates. Serve para mostrar a infinidade de mal-entendidos que é esta nação, pois nem o assaltante se consegue fazer entender: diante da ameaça não há pânico, apenas estranhamento, como se cada um falasse uma língua diversa e nem mesmo o gestual tivesse um significado: "É um assalto! Não, obrigado, hoje não vou querer chocolates". É um texto rico para pensarmos a dificuldade histórica que o Brasil tem de elaborar um discurso constitutivo, em que todos falem um idioma comum em prol da construção de algo duradouro e consistente.

"Yamani", trata de um assunto quase ignorado na nossa prosa: o turismo sexual e a exploração de crianças prostituídas. Um turista, ao viajar pela Amazônia, deixa claro sua aversão ao Brasil e suas florestas, mas, ao mesmo tempo, narra seu desejo por uma criança indígena (prostituta), como é possível observar neste trecho:

“E os índios? O que tem os índios?

O que você achou dos índios do Brasil?

Fodam-se os índios do Brasil. Toquem fogo na floresta. Vão à merda (...) Só lembro de Yamami. Sempre gostei de crianças. Aqui é proibido. Yamami, meu tesouro perdido (...) Indiazinha típica dos seus trezes anos. As unhas pintadas, descalçadas.

Tintas extintas na cara.

Coisinha de árvore (...)”.

No conto, o estrangeiro revela seu descaso referente à natureza e ao povo brasileiro. Seu interesse pela indiazinha Yamami, de treze anos, é puramente sexual. A crítica à situação dos índios e à exploração de crianças no Brasil é direta: “Lá posso colocar Yamami no colo e ninguém me enche o saco. E ninguém fica me policiando. Governo me recriminando”.

Nota-se que o texto nos oferece a experiência vivida por um estrangeiro no Brasil, que viaja pela Amazônia e se encontra com “uma indiazinha”. O testemunho aqui se dá de duas formas: a primeira é a visão desinteressada e alienada que esse estrangeiro tem sobre o país, nada disposto a conhecer a cultura, as tradições, a floresta ou os problemas sociais da Amazônia. Por outro lado, esse mesmo personagem nos apresenta à realidade: o turismo sexual e a prostituição infantil que tomam conta das capitais do país e a marginalização dos nossos índios. A história, em princípio, surge como um simples relato de mais um turista vindo ao país, interessado nas “belezas tupiniquins”, mas que ganha uma dimensão maior ao denunciar uma situação-limite.

"Solar dos príncipes" traz um grupo de moradores de uma favela que resolve filmar o dia-a-dia dos moradores de um condomínio de luxo, um toque sarcástico para comentar a onda que tem sido engomadinhos com uma câmera na mão entrando nas favelas para registrar o ‘inusitado’ e ganhar prêmios internacionais em cima da miséria alheia. Aqui os papéis se invertem, mostrando a situação num avesso cheio de pequenas sutilezas. Já se inicia anunciando a que vem: “Quatro negros e uma negra pararam na frente deste prédio”. Trata-se de um grupo de amigos do Morro do Pavão que quer filmar um apartamento e fazer uma entrevista com um morador. Quando o porteiro, também negro, impede a entrada do grupo, o narrador desabafa: “A idéia foi minha, confesso. O pessoal vive subindo no morro para fazer filme. A gente abre as nossas portas, mostra as nossas panelas, merda”. O incômodo com o fato de permitir a entrada aos de fora, mas não ser recebido quando se desloca ao bairro rico, é manifestado pelo narrador. Ainda, denuncia-se a visão distorcida dos que documentam a periferia: “A gente não só ouve samba. Não só ouve bala”. Ao fim, o porteiro chama a polícia e, assim, a estréia dos quatro aspirantes cai na mesmice: novamente o filme tem tiro e sirene da viatura policial.

"Nação Zumbi", como já citado acima, é um dos pontos altos do livro conta a história de um homem preso por tentar vender o próprio rim, que afinal, era dele, podia fazer com o órgão o que lhe desse na telha. Há um diálogo com o personagem andarilho de "Cronicamente inviável", filme pouco visto e que tirante alguns exageros, poderia colocar na pauta do dia assuntos que urgem ser discutidos - e sem hipocrisia - pela nossa sociedade. O preconceito racial é retomado. O narrador tenta provar de que maneira a venda de seu rim o tiraria da situação de pobreza em que se encontra. No entanto, o tom de decepção de sua fala e a chegada dos policiais no fim da narrativa prenunciam o seu destino: “A polícia em minha porta, vindo pra cima de mim. Puta que pariu, que sufoco! De inveja, sei que vão encher meu pobre rim de soco”.

"Coração" é um texto mais longo, em que salta a veia narrativa de Freire. Seu tema é a homossexualidade.

Em “Totonha”, uma senhora discursa sobre os motivos de não querer aprender a escrever: não é mais moça, não tem importância alguma, não quer baixar a cabeça para imprimir seu nome em um pedaço de papel. Totonha argumenta: “O pobre só precisa ser pobre. E mais nada precisa. Deixa eu, aqui no meu canto. Na boca do fogão é que fico. Tô bem. Já viu fogo ir atrás de sílaba?”.

Em“Trabalhadores do Brasil”, o autor refere-se aos homens e mulheres que se esforçam todos os dias em subempregos para sobreviver. As personagens desse canto recebem os nomes de alguns Orixás e de referências africanas e afro-brasileiras: Olorô-quê, Zumbi, Tição, Obatalá, Olorum, Ossonhe, Rainha Quelé, Sambongo. O narrador interpela diretamente o leitor com a pergunta ao final de cada parágrafo: “(...) tá me ouvindo bem?”. Sem nenhuma pontuação, o texto explode em uma crítica indignada aos “pré-conceitos” relacionados aos negros, mais direta no primeiro e nos últimos parágrafos:

“(...) ninguém vive aqui com a bunda preta pra cima tá me ouvindo bem?” e “Hein seu branco safado? Ninguém aqui é escravo de ninguém”.

“Esquece” define o que é violência aos olhos de um excluído social, que representa tantos outros. Também marcado pela falta de pontuação, o conto é um “desafogo” diante das notícias freqüentes sobre o tema, veiculadas intensamente nos jornais e na televisão, através da lente das classes média e alta. Nesse conto, a vítima está do outro lado, quase sempre esquecida: “Violência é a gente receber tapa na cara e na bunda quando socam a gente naquela cela imunda cheia de gente e mais gente e mais gente e mais gente pensando como seria bom ter um carrão do ano e aquele relógio rolex mas isso fica para depois uma outra hora. Esquece”.

A visão estrangeira da personagem alemã em “Alemães vão à guerra” representa o senso comum: “Nosso dinheiro salvarria, porr exemplo, as negrrinhas do Haiti”. A personagem olha para o Haiti e para Salvador como lugares quentes e cheios de amor.

Porém, é possível afirmar que a noção de “estrangeiro” ultrapassa a questão da fronteira e instala-se nas diferenças entre as classes sociais, o que aponta alguns olhares estrangeiros dentro de um país tão desigual como o Brasil.

Vaniclélia, personagem do conto homônimo, apanha do homem com quem vive e a quem chama de belzebu. Seu parâmetro de comparação são os “gringos”, que escolhem as mulheres no Calçadão de Boa Viagem: “Casar tinha futuro. Mesmo sabendo de umas que quebravam a cara. O gringo era covarde, levava pra ser escrava. Mas valia. Menos pior que essa vida de bosta arrependida”.

No conto "Curso Superior" um jovem expõe à mãe seu medo de entrar na faculdade e não conseguir concluir o curso, por diversos motivos: porque possui deficiência nas disciplinas, tem medo do preconceito, pode engravidar a loira gostosa da turma e não conseguir nenhum tipo de emprego, porque o policial vai olhá-lo de cara feia e ele vai fazer uma besteira. Seu fim seria a prisão, sem o privilégio da cela especial. Por meio desse discurso profético, o círculo vicioso do preconceito racial e social é tratado com ironia pelo autor.

O conto “Caderno de turismo” foge um pouco da temática do livro, mas não deixa de ser polêmico: “Zé, olhe bem defronte: que horizonte você vê, que horizonte? Pensa que é fácil colocar nossos pés em Orlando?” (p.69).

“Nossa rainha” e “Meu negro de estimação” tratam, essencialmente, do embranquecimento do negro. O conflito entre o desejo da menina do morro de ser a Xuxa e a situação de pobreza em que se encontra faz com que sua mãe reflita sobre as diferenças sociais entre sua filha e a Rainha dos Baixinhos. A mídia, novamente, constrói um modelo que reforça o preconceito racial e social. A menina pode vir a ser a Rainha da Bateria, sonho mais próximo à sua realidade. Xico Sá questiona se o conto “Meu negro de estimação” não seria uma fábula a Michael Jackson. O narrador refere-se a seu negro de estimação como um homem melhor do que era: “Meu homem agora é um homem melhor. Mora nos jardins, veste calça. Causa inveja por onde passa. Meu homem não tem para ninguém, só para mim. Meu homem se chama Benjamin”. É importante lembrar que, na gravação em CD que Marcelino Freire fez de seus Contos Negreiros, há uma mudança significativa nesse conto: substitui-se “homem” por “negro”.

Créditos: Sálvio Fernandes de Melo, Universidade Estadual de Londrina | Moacyr Godoy Moreira, mestrando em Literatura Brasileira, USP-SP | Flávia Merighi Valenciano, Mestra em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, FFLCH-USP.

 

 

 

Antologia Poética - Carlos Drummond de Andrade (Resumo)

A obra

Em 1962, Carlos Drummond de Andrade selecionou poemas para a edição de sua Antologia poética; no prefácio, o próprio poeta explica o critério de seleção e divide os poemas escolhidos em nove grupos com "certas características, preocupações e tendências" que condicionam ou definem o conjunto de sua obra. Transcrevemos, a seguir, um trecho do prefácio (os poemas entre parênteses é grifo nosso):

"O texto foi distribuído em nove seções, cada uma contendo material extraído de diferentes obras, e disposto segundo uma ordem interna. O leitor encontrará assim, como pontos de partida ou matéria de poesia:

1. O indivíduo (‘consolo na praia’);

2. A terra natal (‘a terra natal’);

3. A família (‘a família que me dei’);

4. Amigos (‘cantar de amigos’);

5. O choque social (‘Áporo’);

6. O conhecimento amoroso (‘amar-amaro’);

7. A própria poesia (‘a poesia contemplada’);

8.  Exercícios lúdicos (Quadrilha);

9. Uma visão, ou tentativa de, da existência (Cerâmica).

Observe abaixo para visualizar melhor a divisão de Drummond acerca de sua própria obra:

Divisão por seção Temática

1 - O Indivíduo O eterno conflito entre o eu e o social

2 - A terra natal Itabira – saudades e vivências

3 - A família Itabira e vivências íntimas do menino

4 - Amigos Homenagem aos amigos reais ou intelectuais

5 - O choque social A violência humana

6 - O conhecimento amoroso O amor altruísta (como só ele poderia existir)

7 - A própria poesia metalinguagem

8 - Exercícios lúdicos A consequência do amar e desamar

9 - Uma visão, ou tentativa de, a existência O estar no mundo

Em nosso material iremos analisar um poema de cada seção para que a você seja possível uma visão global das facetas deste poeta (Observe a tabela e a numeração dos poemas):

1- Consolo na praia

Vamos, não chores

A infância está perdida

Mas a vida não se perdeu

O primeiro amor passou.

O segundo amor passou.

O terceiro amor passou.

Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.

Não tentaste qualquer viagem.

Não possuis casa, navio, terra.

Mas tens um cão.

Algumas palavras duras

Em voz mansa, te golpearam.

Nunca, nunca cicatrizam.

Mas e o humour?

A injustiça não se resolve.

À sombra do mundo errado

Murmuraste um protesto tímido.

Mas virão outros.

Tudo somado, devias

Precipitar-te de vez_ nas águas.

Estás nu na areia, no vento...

Dorme, meu filho.

O desconsolo do poeta encontra alento na esperança de melhores dias. Observe a preocupação do poeta com o mundo ao redor_ as injustiças e os amores que não são eternos.

2 – A terra natal

Confidência do itabirano

Alguns anos vivi em Itabira

Principalmente nasci em Itabira

Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.

Noventa por cento de ferro nas calçadas.

Oitenta por cento de ferro nas almas

E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação

A vontade de amar, que paralisa o trabalho

Vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.

E o hábito de sofrer que tanto me diverte,

É doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:

Este são Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;

Este couro de anta, estendido no sofá de visitas;

Este orgulho, esta cabeça baixa...

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.

Hoje sou funcionário público.

Itabira é apenas uma fotografia na parede.

Mas como dói!

 

A biografia lírica e real de Drummond reside em Itabira_ cidade que em vida adulta nunca mais voltou, mas cuja lembrança sentimental sempre reservou para si.

 

3 – Infância

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.

Minha mãe ficava sentada cosendo.

Meu irmão pequeno dormia.

Eu sozinho menino entre mangueiras

Lia histórias de Robison Crusoé,

Comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu a

Ninar nos longes da senzala_ e nunca se esqueceu chamava para o café.

...

Minha mãe ficava sentada cosendo

Olhando para mim:

- Psiu...Não acorde o menino.

Para o berço onde pousou um mosquito.

E dava um suspiro...que fundo!

Lá longe meu pai campeava

No mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história

Era mais bonita que a de Robison Crusoé.

 

Imagens belas compõe este poema de uma maneira singular - a família é o pano de

fundo da infância do poeta.

 

4 – Mário de Andrade desce aos infernos

Daqui a vinte anos farei teu poema

E te cantarei com tal suspiro

Que as flores pasmarão, e as abelhas,

Confundidas, esvairão seu mel.

Daqui a vinte anos: poderei

Tanto esperar o preço da poesia?

É preciso tirar da boca urgente

O canto rápido, ziguezagueante, rouco,

Feito da impureza do minuto

E de vozes em febre, que golpeiam

Esta viola desatinada

No chão, no chão.

Homenagem ao poeta Mário de Andrade.

 

5- Áporo

Um inseto cava

Cava sem alarme

Perfurando a terra

Sem achar escape

Que fazer, exausto,

Em país bloqueado,

Enlace de noite

Raiz e minério?

Eis que o labirinto

( oh razão, mistério)

presto se desata:

em verde, sozinha,

antieuclidiana,

uma orquídea forma-se.

Nenhuma luta é vã, pois plantar o amanhã é o papel social de todos.

 

6 – Sentimento do Mundo

Tenho apenas duas mãos

E o sentimento do mundo,

Mas estou cheio de escravos,

Minhas lembranças escorrem

E o corpo transige

Na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu

Estará morto e saqueado,

Eu mesmo estarei morto,

Morto meu desejo, morto

O pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram

que havia uma guerra

e era necessário

trazer fogo e alimento.

Sinto-me disperso,

Anterior a fronteiras,

Humildemente vos peço

Que me perdoeis.

Quando os corpos passarem,

Eu ficarei sozinho

Desfiando a recordação

Do sineiro, da viúva e do microscopista

Que habitavam a barraca

E não foram encontrados

Ao amanhecer

Esse amanhecer

Mais noite que noite.

A guerra sempre foi alvo da crítica de Drummond, daí seu humanismo

 

7 – Poema-orelha

“Aquilo que revelo

e o mais que segue oculto

em vítreos alçapões

são notícias humanas,

simples estar no mundo,

e brincos de palavra,

um não-estar-estando, mas de tal jeito urdidos

o jogo e a confissão

que nem distingo eu mesmo

o vivido e o inventado.”

Metalinguagem – reflexão sobre a própria arte.

 

8 – Quadrilha

João amava Teresa que amava Raimundo

Que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili

Que não amava ninguém.

João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,

Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,

Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes

Que não tinha entrado na história.

O desencontro amoroso.

 

9 – Cerâmica

Os cacos da vida, colados, formam uma estranha xícara.

Sem uso,

Ela nos espia do aparador.

Este poema de influência cubista  permite ver nos objetos a incorporação metafórica da inutilidade da vida.

Bem, após observarmos a temática passemos agora para a estrutura formal de sua composição:

a) Versilibrismo: o uso indiscriminado do verso livre;

b) Prosaísmo: adoção na poesia de processos adequados à prosa como o discurso direto, a ausência de rimas, a conversa com o leitor;

c) Linguagem dinâmica e irônica: versos pequenos e concisos no significado, semelhante ao poema pílula de Oswald de Andrade;

d) Cenas do cotidiano: a infância, a metrópole, Itabira e a família;

e) Recriação metonímica da realidade sentida: Drummond apreende filosoficamente o mundo a partir de assuntos banais.

 

Biografia

Carlos Drummond de Andrade nasceu em 31 de outubro de 1902, em Itabira, Minas Gerais, região rica em ferro, veja o que o poeta diz sobre a cidade que fez famosa mundialmente em seus versos:

"Alguns anos vivi em Itabira.

Principalmente nasci em Itabira.

Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.

Noventa por cento de ferro nas calçadas.

Oitenta por cento de ferro nas almas. (...)"

("Confidência do itabirano")

Fez seus primeiros estudos em Minas Gerais. Em 1918, ingressou como interno no Colégio Anchieta, da Companhia de Jesus, em Friburgo, sendo expulso no ano seguinte, após um incidente com seu professor de Português.

Formou-se em Farmácia, mas em Itabira vivia das aulas de Português e Geografia. Em 1934, transferiu-se para o Rio de Janeiro, assumindo um cargo público no Ministério da Educação.

A partir da década de 1950, Drummond passou a dedicar-se integralmente à produção literária; além de novos livros de poesias, contos e algumas traduções, intensificou seu trabalho de cronista. Drummond morreu no Rio de Janeiro, em 17 de agosto de 1987.

É o poeta da dura realidade das coisas e dos homens. Chamamos de não-porosa  esta característica de retratar a realidade.

Leia o poema e o texto abaixo para compreender melhor por que Drummond é um poeta importante:

José

E agora, José?

A festa acabou,

a luz apagou,

o povo sumiu,

a noite esfriou,

e agora, José?

e agora, Você?

Você que é sem nome,

que zomba dos outros,

Você que faz versos,

que ama, protesta?

e agora, José?

Está sem mulher,

está sem discurso,

está sem carinho,

já não pode beber,

já não pode fumar,

cuspir já não pode,

a noite esfriou,

o dia não veio,

o bonde não veio,

o riso não veio,

não veio a utopia

e tudo acabou

e tudo fugiu

e tudo mofou,

e agora, José?

E agora, José?

sua doce palavra,

seu instante de febre,

sua gula e jejum,

sua biblioteca,

sua lavra de ouro,

seu terno de vidro,

sua incoerência,

seu ódio, - e agora?

Com a chave na mão

quer abrir a porta,

não existe porta;

quer morrer no mar,

mas o mar secou;

quer ir para Minas,

Minas não há mais.

José, e agora?

Se você gritasse,

se você gemesse,

se você tocasse,

a valsa vienense,

se você dormisse,

se você cansasse,

se você morresse....

Mas você não morre,

você é duro, José!

Sozinho no escuro

qual bicho-do-mato,

sem teogonia,

sem parede nua

para se encostar,

sem cavalo preto

que fuja do galope,

você marcha, José!

José, para onde?

E agora ,José?

 

José Saramago

Há versos que se transmitem através das idades do homem, como roteiros, bandeiras, cartas de marear, sinais de trânsito, bússolas- ou segredos. Este, que veio ao mundo muito depois de mim, pelas mãos de Carlos Drummond de Andrade, acompanha-me desde que nasci, por um desses misteriosos acasos que fazem do que viveu já, do que vive e do que ainda não vive, um mesmo nó apertado e vertiginoso de tempo sem medida.

Considero privilégio meu dispor deste verso, porque me chamo José e muitas vezes na vida me tenho interrogado: “E agora?” Foram aquelas horas em que o mundo escureceu, em que o desânimo se fez muralha, fosso de víboras, em que as mãos ficaram vazias e atônitas. “E agora, José?” Grande, porém, é o poder da poesia para que aconteça, como juro que acontece, que esta pergunta simples aja como um tônico, um golpe de espora, e não seja, como poderia ser, tentação, o começo da interminável ladainha que é a piedade por nós próprios.

Em todo o caso, há situações de tal modo absurdas ( ou que pareciam vinte e quatro horas antes), que não se pode censurar a ninguém um instante de desconforto total, um segundo em que tudo dentro de nós pede socorro, ainda que saibamos que logo a seguir a mola pisada, violentada, se vai distender vibrante e verticalmente afirmar. Nesse momento veloz tocara-se o fundo do poço.

Mas outros Josés andam pelo mundo, não o esqueçam nunca. A eles também sucedem casos, desencontros, acidentes, agressões, de que saem às vezes vencedores, às vezes vencidos. Alguns não têm nada e ninguém a seu favor, e esses são, afinal, os que tornam insignificantes e fúteis as nossas penas.

A esses, que chegaram ao limite das forças, acuados a um canto pela matilha, sem coragem para o último ainda que mortal arranco, é que a pergunta de Carlos Drummond de Andrade deve ser feita, como um derradeiro apelo ao orgulho de ser homem: “E agora, José?.

Precisamente um desses casos me mostra que já falei demasiado de mim.

Um outro José está diante da mesa onde escrevo. Não tem rosto, é um vulto apenas, uma superfície que treme com uma dor contínua. Sei que se chama José Júnior, sem mais  riqueza de apelidos e genealogias, e vive em São Jorge da Beira. É novo, embriaga-se, e tratam-no como se fosse uma espécie de bobo.

Divertem-se à custa alguns adultos, e as crianças fazem-lhe assuadas, talvez o apedrejem de longe. E se isto não fizeram, empurram-no com aquela súbita crueldade de crianças, ao mesmo tempo feroz e cobarde, e José Júnior, perdido de bêbedo, caiu e partiu uma perna, ou talvez não, e foi para o hospital. Mísero corpo, alma pobre, orgulho ausente – “E agora, José?.

Afasto para o lado os meus próprios pesares e raivas diante deste quadro desolado de uma degradação, do gozo infinito que é para os homens esmagarem outros homens, afogá-los deliberadamente, alvitá-los, fazer deles objeto de troça, de irrisão, de chacota – matando sem matar, sob a asa da lei ou perante sua indiferença. Tudo isto porque o pobre José Júnior é um José Júnior pobre.

Tivesse ele bens avultados na terra, conta forte no banco, automóvel à porta – e todos os vícios lhe seriam perdoados. Mas assim, pobre, fraco e bêbedo, que grande fortuna para São José de Beira. Nem todas as terras de Portugal podem se gabar de dispor de uma alvo humano para darem livre expansão a ferocidades ocultas.

Escrevo estas palavras a muitos quilômetros de distância, não sei quem é José Júnior, e teria dificuldade em encontrar no mapa São Jorge da Beira. Mas estes nomes apenas designam casos particulares de um fenômeno geral: o desprezo pelo próximo, quando não o ódio, tão constantes ali como aqui mesmo, em toda parte, uma espécie de loucura epidêmica que prefere as vítimas fáceis.

Escrevo estas palavras num fim de tarde cor de madrugada com espumas no céu, tendo diante dos olhos uma nesga do Tejo, onde há barcos vagarosos que vão de margem a margem levando pessoas e recados. E tudo isto parece pacífico e harmonioso como dois pombos que pousam na varanda e sussuram confidencialmente. Ah, esta vida preciosa que vai fugindo, tarde, mansa que não será igual amanhã, que não serás, sobretudo, o que agora és.

Entretanto, José Júnior, está no hospital, ou saiu já e arrasta a perna coxa pelas ruas de São Jorge da Beira. Há uma taberna, o vinho ardente e exterminador, o esquecimento de tudo no fundo da garrafa, como um diamante, a embriaguez vitoriosa enquanto dura. A vida vai voltar ao princípio. Será possível que a vida volte ao princípio? Será possível que os homens matem José Júnior? Será possível?

Cheguei ao fim da crônica, fiz o meu dever.

E agora, José?

SARAMAGO, José. A bagagem do viajante – crônicas. 3. d. Lisboa: Caminho, 1986. P. 35-7.

Este texto de José Saramago explicita claramente a importância do indagar do poeta e dos homens sobre o estar no mundo e percebê-lo em suas infinitas proporções de crueldade e bondade que possuem uma igual gênese: o  próprio homem.

Como poeta humanista  hábil no lidar das palavras Drummond destacou-se como um dos maiores poetas da língua portuguesa, comparável até mesmo a um Camões ou Pessoa.

Como um ativista dos direitos humanos Drummond muitas vezes nega a influência do mundo moderno em sua obra, é o fugir do individual e o olhar para o coletivo e a solidariedade:

"Não serei o poeta de um mundo caduco.

Também não cantarei o mundo futuro.

Estou preso à vida e olho meus companheiros.

Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.

Entre eles, considero a enorme realidade.

O presente é tão grande, não nos afastemos.

Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,

não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,

não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,

não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.

O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,

a vida presente."

("Mãos dadas”)

Por: www.lazarotte.cjb.net

 

 

Antologia Poética - Carlos Drummond de Andrade

Dividido em nove partes, que correspondem a diferentes universos temáticos definidos pelo próprio autor, o livro oferece uma visão geral da criação de Carlos Drummond de Andrade desde sua estréia até o início da década de 1960

Organizada pelo próprio Carlos Drummond de Andrade e publicada em 1962, a Antologia Poética reúne textos que originalmente saíram em diversos livros. A obra foi dividida pelo autor em nove partes, cada uma correspondente a um universo temático específico. São as seguintes: um eu todo retorcido; uma província: esta; a família que me dei; cantar de amigos; na praça de convites; amar-amaro; poesia contemplada; uma, duas argolinhas; tentativa de exploração e de interpretação do estar-no-mundo.

 

O SER E O MUNDO

A seleção que Drummond empreendeu revela alto grau de consciência do escritor sobre seu fazer poético. Os temas que escolheu são basicamente os mesmos que a crítica, no futuro, sintetizaria como os fundamentais em sua vasta obra.

Há uma tensão na poesia de Drummond, principalmente a partir do livro Sentimento do Mundo (1940), que faz o poeta questionar sua atividade com extrema severidade. Tal tensão tem como eixo temático uma oposição entre o ser do poeta e o mundo exterior.

Quando o eu-lírico se volta para si, sente que seria melhor dirigir-se ao mundo; quando se volta para o mundo, sente que seria menos pretensioso limitar-se à esfera do ser.

No “Poema de Sete Faces”, o polo do ser tem prioridade, como mostram os seguintes versos:

Mundo mundo vasto mundo,

mais vasto é meu coração.

 

Num poema posterior, “Mundo Grande”, o eu-lírico parece responder àquela sentença:

 

Não, meu coração não é maior que o mundo.

É muito menor.

Nele não cabem nem as minhas dores.

Por isso gosto tanto de me contar.

Por isso me dispo,

por isso me grito,

por isso freqüento os jornais, me exponho

cruamente nas livrarias:

preciso de todos.

 

Essa tensão de impulsos contraditórios será a origem de todos os desdobramentos temáticos indicados pelo poeta.

1) Um eu todo retorcido

Na primeira parte do livro estão poemas que tratam da questão do indivíduo. O eu-lírico fragmentado se apresenta como um deslocado no mundo, na figura do gauche (palavra francesa que significa, literalmente, esquerdo).

A imagem retoma a tradição francesa do poeta inadaptado, que tem como referência central Charles Baudelaire. Isso ocorre, por exemplo, no próprio “Poema de Sete Faces”:

Quando nasci, um anjo torto

desses que vivem na sombra

disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

 

2) Uma província: esta

Nessa seção, há poemas sobre a terra natal do autor. Permeados de atmosfera nostálgica, não se deixam levar pelo saudosismo, mas, antes, questionam o espaço natal, colocando sempre em evidência que o espaço é também uma criação subjetiva.

Trata-se, portanto, de um prolongamento da questão do eu em relação ao mundo. Em “Confidência do Itabirano” diz:

Alguns anos vivi em Itabira.

Principalmente nasci em Itabira.

Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.

Noventa por cento de ferro nas calçadas.

Oitenta por cento de ferro nas almas.

E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação

 

3) A família que me dei

Os poemas expressam uma profunda reflexão do poeta sobre o atributo da memória. A família é criação do eu. A memória cria nostalgia e saudade, a partir do presente, articulando fragmentos esparsos de um passado sem nenhum sentido pressuposto. O questionamento a respeito da memória deve destruir a sua ilusão para recompô-la em seguida, no plano da criação poética. Um exemplo é “Infância”:

E eu não sabia que minha história

era mais bonita que a de Robinson Crusoé.

 

4) Cantar de amigos

Esse bloco de poemas trata da temática da amizade, mas de uma amizade estabelecida no plano poético, como se os amigos fossem ligados ao eu-lírico, esse “Carlos” mitológico, que não deve ser confundido com o próprio poeta e que saúda Manuel Bandeira, nos belos versos de “Ode no Cinqüentenário do Poeta Brasileiro”:

Debruço-me em teus poemas

e neles percebo as ilhas

em que nem tu nem nós habitamos

(ou jamais habitaremos)

e nessas ilhas me banho

num sol que não é dos trópicos,

numa água que não é das fontes

mas que ambos refletem a imagem

de um mundo amoroso e patético.

 

5) Na praça de convites

Poesia que se aproxima do lúdico. Procura-se, nos herméticos caminhos da linguagem, um sentido para a atividade poética no mundo contemporâneo.

Resta à poesia o jogo desinteressado com a linguagem, como uma prática da arte mais técnica, uma espécie de poesia para poetas. Veja-se “Política Literária”:

O poeta municipal

discute com o poeta estadual

qual deles é capaz de bater o poeta federal.

Enquanto isso o poeta federal

tira ouro do nariz.

 

6) Amar-amaro

Aparece aqui a tensão entre o mundo exterior e o ser do poeta. É um momento de angústia e medo, que lembra bastante a perspectiva da II Guerra Mundial (1939-1945). Em “Sentimento do Mundo”, o poeta diz:

Tenho apenas duas mãos

e o sentimento do mundo,

mas estou cheio de escravos,

minhas lembranças escorrem

e o corpo transige

na confluência do amor.

 

O eu-lírico mostra sua pequenez enquanto matéria, mas acredita numa forma de transformação social, que se mantém apenas como perspectiva embrionária. Essa “esperança” não é apenas na transformação do mundo exterior, mas de todas as relações humanas. Quase sempre, porém, tal perspectiva é sufocada por forças gigantescas que partem a unidade dos seres e os tornam incomunicáveis e incompreensíveis uns aos outros e a si mesmos. Em “O Elefante”:

Eis meu pobre elefante

pronto para sair

à procura de amigos

num mundo enfastiado

que já não crê nos bichos

e duvida das coisas.

Ei-lo, massa imponente

e frágil, que se abana

e move lentamente

a pele costurada

onde há flores de pano

e nuvens, alusões

a um mundo mais poético

onde o amor reagrupa

as formas naturais

 

7) Poesia contemplada

Poemas de cunho metalinguístico, ou seja, em que o poeta constrói uma reflexão sobre o próprio fazer poético. O senso estético do autor alcança grande dimensão de consciência, e a tensão entre o eu e o mundo se atenua, já que o eu-lírico suspende a existência de ambos para situar-se no território da linguagem (“penetra surdamente no reino das palavras”).

Drummond atinge, nesse momento, uma dimensão parecida com a do poeta francês Stéphane Mallarmé, numa postura de arte pela arte, ou seja, a arte existe por si e é justificativa de si mesma. O poeta não deve, portanto, buscar a expressão de qualquer sentimento, sensação ou objeto exterior. O tema de sua poesia está no nada que se esconde por trás das coisas, esse nada que as cria e que é a própria linguagem. O poeta parece compreender que tudo o que está no poema só existe como linguagem. Em “Procura da Poesia”, diz:

Não faças versos sobre acontecimentos.

Não há criação nem morte perante a poesia.

Diante dela, a vida é um sol estático,

não aquece nem ilumina.

As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.

 

8) Uma, duas argolinhas

Poemas sobre o conhecimento amoroso, nos quais a própria natureza do amor é contestada: ele será visto mais como criação subjetiva do que como fenômeno exterior, um dado natural. O angustioso ato de amar, no entanto, não se contenta em saber disso e tem quase sempre um desfecho triste, um travo amargo.

O amor, tema que foi tão largamente utilizado pela poesia e por isso poderia parecer desgastado, ganha nova significação, numa estrutura poética que leva em conta o próprio ato criativo implícito na experiência subjetiva do amar. O poeta não expressa o amor, mas cria uma narrativa sobre esse sentimento, como em “O Amor Bate na Aorta”:

Entre uvas meio verdes,

meu amor, não te atormentes.

Certos ácidos adoçam

a boca murcha dos velhos

e quando os dentes não mordem

e quando os braços não prendem

o amor faz uma cócega

o amor desenha uma curva

propõe uma geometria.

Amor é bicho instruído.

Olha: o amor pulou o muro

o amor subiu na árvore

em tempo de se estrepar.

Pronto, o amor se estrepou.

Daqui estou vendo o sangue

que escorre do corpo andrógino.

Essa ferida, meu bem,

às vezes não sara nunca

às vezes sara amanhã.

 

9) Tentativa de exploração e de interpretação do estar-no-mundo

O mundo aparece como uma “máquina” sem sentido prático a priori. O eu busca uma compreensão impossível, que está para além das coisas. O ideal de uma arte pura tropeça nos impedimentos do mundo, na simbologia dos objetos: a “pedra no meio do caminho”, o “resíduo”. Após a destruição do mundo, busca-se o que resta, essas marcas que permanecem, que perduram na existência e resistem, de maneira precária, à ação do tempo. “Tristeza no Céu”:

No céu também há uma hora melancólica.

Hora difícil, em que a dúvida penetra as almas.

Por que fiz o mundo? Deus se pergunta

e se responde: Não sei.

 

Marias - Janaína Azevedo

Editora Universitária - João Pessoa – PB - Versão – 1998/1999

Maria Abigail PereiraPara as marias de mim: Ivonete Azevedo (minha mãe), Dona Dulcineia (meu pseudônimo) e Dona Manuela (amadas avós), minhas tias (quase todas Marias), Lola (tia e mais), D. Zefinha (eterna professora), Adélia Prado, Olga, Nery, Silvaneide (mui amigas, Clarice Lispector, Albânia (como eu gosto de você), Rachel Beltrão, Hozanete, Ana Cecília (grandes mulheres), D. Lourdinha (mestra), Lygia Fagundes Telles, minhas alunas e ex-alunas, Adriana Calcanhoto, Helena Parente Cunha, Maura Lopes Cançado, minhas primas (notadamente Juliana e Fiama), Virginia Woolf, Katherine Mansfield, Capota (a louca da minha infância), Francisca, Vitória Vick, Alda (mais amigas), Safo, Santa Tereza D’Ávila, Heloísa, de Abelardo, Diadorim, Capitu, Leninha (que me enfeita as unhas), as mulheres da família Cândido, de Areia, Ivonee filhas (minhas vizinhas), Maria Matamoros e Hilda Hilst, Josilene Castro, D. Toinha, Lúcia Meira, Gorete Lucila (na eterna luta com o verbo), as professoras da minha cidade, Silvia Perazzo, Alfonsina, da Argentina, Anne Parker,Simone de Beauvoir, Ana Karenina, Lucrécia Neves, Lóri Lambi, Chiquinha Gonzaga, Nina, Ana Menezes e Madalena (personagens de Lúcio Cardoso), Melinha Marchiotti, Rachel de Queiroz, Marie Curie, Camille Claudell (amante de Rodin, que enlouqueceu de amor), Maria “de raqué”, Dona Rita “Pesquêro”, Severina “Quebra-gái”, Tia Adélia (personagens da minha infância), Margarida La Roque, Dinah Silveira de Queiroz, Cecília Meireles, Florbela Espanca, Cátia de França, Safo, Minhas companheiras de Primeira Comunhão, Anayde Beiriz, Minhas afilhadas: Fernanda e Edileuza, Vesti (mulher anti-bíblica que se negou ao rei), D. Nereide (professora primária), a esposa de Lot que olhou para trás, Da Guia (de Pombal), Maklene, companheira de apto., minha irmã e sobrinha: Jacinete e Vitória, sobrinhas e irmãs de Beto (destacadamente Ridete, da Legião de Maria), as mulheres doentes, mais vaidosas, Otília das Neves e Maria (mãe de Jesus).Para os meus Josés: Valberto Cardoso (Beto), Alcides, Alcione, Carlinhos, Gilberto, Klebysson, Adriano de León, Ney, Aderaldo, Pádua, Carlos, filho do poeta Oscar Targino, meu paiavô Severino Azevedo, meu pai e irmãos: Jacinto, Júlio

César, Juliano e Filipe.Parecerá blasfemo. Mas não chamam sagrado o livro em que Jó fez imprimir suas dores, amaldiçoando o dia do seu nascimento?

Por que não o meu, que o abençôo e acho o degredo bom, os penedos belos as poucas flores, dádivas? (Adélia Prado, À soleira)

 

Apresentação

Idealizado e estruturado há 5 anos atrás, o Prêmio Novos Autores Paraibanos tem se constituído um compromisso desta Universidade Pública com os novos autores da literatura paraibana. Portanto, consolida-se cada vez mais o incentivo à produção literária em Romance, Teatro, Livro Infantil, Poesia, Conto e o único categoria Cordel.

Ao apresentarmos esta a edição do prêmio, num momento em que as dificuldades financeiras das universidades se agravam, reafirmamos o compromisso político da UFPB com a cultura e as artes, considerando-as instrumentos de resgate e preservação da identidade no nosso povo.

Não é fácil publicar em época de crise; o sucesso deste prêmio está na parceria PRAC/Editora Universitária, mais especificamente, no envolvimento e compromisso da

equipe técnica responsável pelo mesmo e na qualidade dos trabalhos concorrentes  – foram 187 autores participantes.

Como diz o filósofo “Os livros não mudam o mundo. Os homens mudam o mundo, os livros mudam apenas os homens”.

Parabéns aos jovens autores, participantes.  Parabéns a Fernando José da Silva Monteiro, Marcos Tadeu Lacerda, Janaína de Castro Azevedo e Silva, Edmundo de Oliveira Gaudêncio e Alfredo Feliciano de Araújo Júnior.

Rossana Maria Souto Maior Serrano Pró-Reitora para Assuntos Comunitários da

 

UFPB Prefácio

Asmática escritura

Hildeberto Barbosa Filho

Com Marias, Janaína Azevedo não somente se sagra vencedora, na categoria Contos, do concurso Novos Autores Paraibanos, versão 1999, mas, antes de qualquer imposição de ordem extraliterária, parece desnudar um pacto estético e existencial com a carne da palavra. Pacto que parece sinalizar para algo de urgente e de definitivo.

Jovem, areense, estreante, Janaína como que convoca os mais vândalos vocábulos, em sua vã profanação, para exumar-lhes do corpo a seiva do sagrado, numa escrita em que erotismo e liturgia se consagram numa esplêndida e surpreendente unidade estésica. Unidade que a revela, já, Senhora dos seus domínios, tanto no que há de característico de sua retórica particular, quanto no que podem alcançar os imponderáveis elementos de que se tece o seu universo ficcional, com sua sensual e pulsante atmosfera, habitada por seres estranhos e desolados.

Não só com palavras se faz literatura, penso e penso diferentemente de Mallarmé. Não obstante, na construção do texto literário, a palavra seja fundamental. Toda e qualquer palavra.

Se na poesia, por exemplo, a palavra deve ser elaborada com o máximo de intensidade inventiva, na prosa de ficção também não se deve fazer por menos, sobretudo se se considerar o lampejo de poeticidade que vem assumindo a prosa contemporânea nas vozes de certos ficcionistas/poetas. Por isto mesmo, tendo a acreditar que certa prosa é

poesia. Lúcio Cardoso, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Adélia Prado e Hilda Hilst estão aí e não me deixam mentir.

É esta a família a que pertence Janaína Azevedo. Com a ambiguidade das semelhanças e das diferenças. Com todos os riscos a que nos acena o especular gesto dialógico e intertextual. Com toda a angústia, mas também com todo o enlevo, da influência. Afinal, quem dela poderia mentir.

É esta a família a que pertence Janaína Azevedo. Com a ambiguidade das semelhanças e das diferenças. Com todos os riscos a que nos acena o especular gesto dialógico e intertextual. Com toda a angústia, mas também com todo o enlevo, da influência. Afinal, quem dela poderia escapar.

A bem da verdade, conforme postula T. S. Eliot, o melhor e o mais individual de um poeta ou de um autor talvez sejam exatamente aquelas passagens em que os escritoresmodelo, os paradigmas do passado, mais rigorosamente revelam suas qualidades. Em outros termos: o que importa não é tanto a diferença, mas principalmente a semelhança.

Em Janaína Azevedo, a par da atmosfera psicológica e existencial em que mergulham os seus personagens, sempre vivendo situações limites, conflitos emocionais, perdas irreparáveis, revisão de valores humanos, perplexidades e espantos, releva-se, e releva-se, em realce, a fluidez da prosa característica de uma escrita, que classificaria, ao mesmo tempo, de orgástica e celebratória, dionisíaca e epifânica, sagrada e profana, divina e diabólica, enfim, feminil e poética.

Em Marias, sobretudo num conto, como  Tia Dona, e num miniconto, como Comungado banquete, a frase brilha... Brilha poeticamente, lavada pela água das metáforas, dos oxímoros, das sinestesias, a compor um translúcido lago imagético, aonde nadam as mais abissais inquietações humanas. Leiam-se, entre outros, os contos  Dá-me tua mão, Ó virgem, Cárie na flor, O vinho tinto da memória, e os minicontos Tão-somente essa cruz, Rituais e Rainha na cozinha.

De outra parte, e talvez onde resida, de modo mais seminal, a pedra de toque do texto de Janaína seja precisamente na inconfundível convergência do sagrado e do profano.

Aqui, à semelhança emblemática de Os cantares de Salomão, o ato cerimonial de adorar se converte em acesa chama erótica, ao mesmo tempo em que o eros que rege o corpo também contempla a alma, e se espiritualiza, e se sacraliza...

Perpassa, assim, as curvas da textualidade, naquilo que ela possui de artístico e expressional, uma intensa e escarlate sensação de gozo, mesclada ao aroma virgem dos

incensos e aos odores secretos advindos dos silêncios e dos mistérios que habitam os sacrários, os oratórios e a placidez eucarística das imagens santas.

O amor, a solidão, a morte, a mulher, principalmente a mulher metaforizada na sagrada figura de Maria, aparecem sempre como sacras entidades, porém, enfática e poeticamente, como instâncias concretas e cotidianas de manifestações de eroticidade. Seja aí, talvez, onde Adélia Prado e Hilda Hilst se perfigurem como ecos textuais mais explícitos. Janaína, no entanto, é Janaína, pois à escrita orgástica que preside à dicção das maternas escritoras (quem sabe não seja Clarice a mãe mais duradoura e mais amada...), soma-se algo extremamente pessoal que não diviso em nenhuma delas.

Diria que, na temperatura emocional da escrita de Janaína, ao poético se funde algo que uma sensação de asfixia, algo como que se o ar faltasse; algumas quebras, algumas paradas, espasmos, estertores, soluços, algo assim como se a ansiedade da asma invadisse o reino das palavras para trazer à tona o interdito, o inominável, o impronunciável, o esquecido, a vidência mais secreta da beleza e do milagre.

A toda esta epifania, eu nomeio de asmática escritura.

Ponta do Cabo Branco, inverno de 1991

 

Primeira Hora

Oração Preparatória

Nunca foi às Santas Marias?

Pois olhe, ali é que se canta!

Ali chegam, de toda parte, os aleijados!

Passei por lá dia de festa...

De certo a igreja é pequenina,

Mas quantos gritos e promessas!

Ó Grandes Santas, tende dó de todos nós!

(Frédéric Mistral, Mireia)12

Dá-me tua mão, ó Virgem

“Por que te ergues tão de súbito à minha frente,

ó bela imagem empalidecida?

Queres com um aceno trazer-me o consolo

na profundeza do outono

em que me enterrei e me perdi?”

(Erik Axel Karlfeldt)

 

Escuto a porta bater e sinto: a mão abre a porta e se aproxima de mim, novamente. Os passos são sempre tão leves. Finjo dormir. A mão macia alisa meu cabelo, minha pele e eu me mexo. A mão tem medo e foge. A porta volta a bater teimosa, e ainda ouço os passos leves no corredor, depois voam. Quase lhe peço para voltar: eu não queria assustá-la, murmuro baixinho. Sinto minha boca e meu coração vermelhos. De quem era aquela mão que o escuro escondia a face? Qual seria o sexo dessa mão? A mão como louca a procurar em mim, o quê?

Devagarinho amanhece, e o cheiro dos pãezinhos assando já domina a manhã.

Atravesso o corredor e abraço minha mãe por trás:

- Bom dia! pego um pãozinho e corro para o jardim. Não quero que ela me veja assim pensando na mão. Rosas, margaridas, sempre-vivas, as flores que todas as semanas eram cuidadosamente colhidas e levadas ao cemitério. Papai. Era bebê quando ele morreu assassinado. Pela mão, será a mesma?

A mão, sem rosto, sem corpo, a mão. A primeira vez veio nervosa, e pensei que fosse minha mãe. Há quanto tempo isso? Desde o quadro? O espinho da rosa espetou-me eu

suguei meu mesmo sangue. Minha mãe, então, aparece na porta e me chama:

- Estou atrasada para a missa das nove. Falou prendendo o cabelo. Já eram nove horas?

- Por que a senhora não solta o cabelo? Tão bonito

- Você sabe muito bem que eu nunca solto meu cabelo, ora!

Ainda voltou:

- Você não quer mesmo, ir?

Disse-lhe que não, ela suspirou e saiu. Fazia mesmo um bom tempo que não ia à igreja, saíra do coral, da equipe de liturgia, de tudo. Deus não lhe excitava mais, nem os milhões de anjinhos nus, todos nus. E a Virgem Maria toda coberta pelo seu manto azul com seu sexo puro? Não, não podia enquanto houvesse a mão. A mão era meu pecado capital.

Minha mãe não sabia da mão, era meu vertiginoso segredo. Fui envolvida por uma quietude sufocante. Tive vontade de ouvir música, mas quase todos os nossos discos eram religiosos:

Pe. Zezinho, discos natalinos, mil e uma campanhas da fraternidade.

- Deus, estaria eu clamando pelo pecado?

Pensei alto, eu que nem sabia mais o que era pecado? Peguei a Bíblia, li Romanos 8: “Porquanto a inclinação da carne é inimizada contra Deus, pois não é sujeita à lei de Deus, nem em verdade o pode ser”. A mão não é carne? “A inclinação da carne é morte”. Continua Romanos. Minha mãe é que estava em vida abundante. Vida em abundância. Cheguei ao estágio de preferir a pouca morte. Mas não é de mim que eu sinto pena, é da minha mãe, que se põe a rezar por mim, pela minha antiga devoção, achando que é rito/crise da adolescência, meu estado atual. Daqui a pouco ela passa e que desculpa terei? sou hipócrita o bastante e não tenho coragem de revelar à minha mãe a verdade. Fora na igreja que aprendera a ter medo? Olho para o retrato na parede, mamãe e papai, ainda pecadores, ainda felizes. Depois miro o quadro ao lado: é fascinante.

Adormeci, estava tão preguiçosa. Mamãe já preparava o almoço. Chego na cozinha e sento.

- Como foi a missa?

Sinto-a empolgar-se.

- Ah, Fátima, foi linda. Tudo voltado para o jovem.

Lapidação, pensei.

- Mamãe, você sabe que eu nunca a magoaria, não?

Ela se voltou, e me olhou e continuou a cortar cebolas. Já a magoara.

Descasquei uma banana:

- “Quem não tem pecado pode atirar a primeira pedra”.

...

- A senhora pode atirar quantas pedras quiser, mamãe.

Ela ralhou qualquer coisa mas eu já estava no telefone.

- Pois é - eu repetia enquanto tirava o esmalte vermelho das unhas.

- Quantos anos ela tem?

- Dezessete a mais que eu: trinta e sete, trinta e oito.

- Deus do céu! É muito jovem.

- Ela está murchando: ainda ama o marido morto há dezoito anos atrás depois de Deus é claro.

- E seu irmão?

- Passa aí o alicate. Não fica melhor dessa outra cor? Coloquei as duas mãos no rosto e fiz um gesto imitando uma tigresa.

- Seu irmão está no seminário, não?

- Há cinco anos: é o que põe a minha mãe viva. Ela esperava que eu fosse freira, mas eu descobri o pecado antes de tudo. Já lhe falei da mão?  Disse mas me arrependi. A mão era coisa minha. Rodopiei no meio da sala.

- Marcos perguntou por você. Você precisa sair, não? Faltou muitas provas já.

- Eu estava dando um tempo, Irene, pra ver se as rezas de mamãe surtiam efeito e eu retornaria ao paraíso como se nada tivesse acontecido.

- A regeneração. Não se preocupe, Paulo também virou as costas ao filho dele.

Foi Paulo mesmo, sei lá?

- Coloca um disco Irene. Foi Paulo mesmo que o negou duas vezes? Nem lembro mais. Mas depois, voltou humilhado e se humilhando, como Ele gosta.

- Ganhei esse disco do Cacá.

- Coloca Tatuagem. Espichei-me lânguida no sofá. “Quero ficar no teu corpo feito tatuagem/que é pra te dar coragem pra seguir viagem/quando a noite vem”. A música da mão.

- Por que não anoitece?

- Pra quê? Por que você não arranja um namorado? No fundo você é uma pudica. Igualzinha à sua mãe.

- Eu tenho medo e sou estranha.

- Acho que você é forte convidada a ter outro filho dele. O segundo primogênito? Riu.

- E subiu ao céu. Virgem e Imaculada. Lá em casa há um quadro da Virgem, fascinante.

Levanto-me, pego a bolsa, solto um beijinho pra Irene:

- Tchauzinho.

Só na rua me lembro das apostilas que fora buscar. Pego o ônibus.

Devagarinho também vai anoitecendo. E já estou eu a pensar que a mão virá. E se ela não? Abro a porta silenciosa, mas minha mãe ouve e me mostra um envelope branco em cima do centro. Já sei.

- Que bom, mamãe, que bom! Como é que ele está? Pergunto indiferente, fingindo líquido/demasiado interesse.

- Muito bem, graças a Deus e com Sua ajuda. Por que não lê a carta?

- Depois, mãe, depois.

Ligo a televisão. Como estará ele? Um mamãe masculino.

- Sabe, Fátima, eu não entendo como é que você...

- Preciso de um banho. Você gostaria que eu tivesse seguido a mesma carreira, não? Beijei-lhe e saí da sala.

No primeiro dia que pensei sério no assunto, ser freira, tínhamos vindo da igreja, no meio da noite, veio-me a mão, como um diabo, cheio de vida e prazer: macia, quente, ousada. Ocorreram então pequenas mudanças: comecei imediatamente a não ir mais à igreja, e, quando ia, para não preocupar minha mãe, não ouvia sequer uma palavra do que o padre dizia: só via diante de mim a mão. Os anjinhos nus e suas mãos. O santíssimo sagrado e sua mão, a Virgem Maria e sua mão quente e macia. Há quanto tempo isso? Desde o quadro? Devia fazer algum tempo, pois mamãe já estava desesperançada. É certo que quis colocar a culpa em Irene, coitada! Obesa e feliz.

Já era noite adulta e eu me alegrei. Ela viria: ela viria, gritava meu coração vermelho de sangue. E enquanto ela estivesse comigo, eu não teria medo, tudo como antes.

Esqueceria a noite passada, tudo como antes. Até que ela cansasse e fosse embora, da mesma maneira que entrou. Mamãe abriu a porta do quarto e me chamou pra jantar. Não queria mais fui.

- Leu a carta? Perguntou passando-me o arroz.

- Li.  menti.

- Quando ele vier, você vai à igreja conosco, não?

Permaneci calada.

- Amanhã chegará a minha nova ajudante. Seu irmão virá e eu preciso de alguém, mesmo porque eu me canso muito. Antes você me ajudava, mas agora.

- Me desculpe, mamãe, me desculpe.

Ajudei-a a lavar a louça, secá-la, guardá-la. Ainda varri a cozinha.

- Quando é que ele chega?

- Na próxima semana. Respondeu-me com felicidade nos olhos.

- Pronto. Vou para o quarto. Ainda perguntei se a nova ajudante começaria a trabalhar amanhã.

- Sim. É filha de Rita, a mulher que limpa a igreja. Menina muito boa, deve ter a sua idade mais ou menos.

Claro, a mulher que limpa a igreja. Estou sacralizada. Passo na sala e olho o quadro silencioso e seu desejo mudo.

A noite veio rutilante e promissora. De dentro do seu oráculo, esperei-a: ardência e clemência. Mas, que houvera com a mão? Até ela decidira me atormentar? Me aponta o caminho e foge?

Saí do quarto e fui à cozinha. Na copa, o quadro da Virgem Maria com sua mão macia, branca apontando para mim: petrifico-me. A santa está de azul, tem longos cabelos pretos e olhos muito tristes. E tem a mão. E me chama a mão.

Corro para o banheiro, estou doente de heresia. Tomo um banho e espero calmamente o amanhecer. Olho-me no espelho, estou com olheiras e uma revelação. Sento na cama e adormeço calmamente. Já era muito tarde quando acordei e saí do quarto.

Seminua sigo pelo mesmo corredor de antes como se fosse outro. Sonolenta esfrego os

olhos de sono e miro as coisas ao redor. É tão fantástico o que vejo que não sei o que vejo: a mão e o corpo da mão e o rosto da mão e o vestido azul da mão e o longo cabelo preto da mão.

Paraliso-me: aquela mão lavando a louça na minha casa.

Grito alto e Ela se vira e me sorri. E ergue a mão. Mas, me oferece a mão. Estou seminua e os olhos dela me passeiam. Corri: molhados olhos nas alcovas de mim. Procuro o quadro. Não há mais quadro: apenas uma moldura rompida. Tranco-me no quarto: meu velho santuário. O que faço, então: Ir à casa de Irene? À Universidade? À Igreja? Ou tentaria a auto-flagelação? Tudo, tudo vão. De nada me valeria precipitados gestos. O Armagedon. Eu sabia que devia esperar a noite. Só nisso jazia a minha certeza.

E a noite veio: do quarto ouvi os passos na cozinha, a mão abrindo e fechando a torneira e minha mãe a elogiá-la.

- Filha, você não vai mesmo sair daí?

Minha mãe perguntando. Abri a porta como se pedisse perdão pelo depois.

- Você não foi sequer cumprimentar Maria. Sabe, eu estava louça para mostrar-lhe o quadro, aquele da Virgem Maria, erguendo a mão, pois é, não sei como, hoje ele amanheceu espatifado no chão, nem a gravura deu para aproveitar. Mas era a cara de Maria.

Igualzinha.

O prego estava por um fio. Preciso dormir agora. Sua bênção, mamãe. Ela saiu e eu deixei a porta encostada. Pouco importava, eu sei: Ela viria de qualquer maneira.

- Mesmo tensa adormeci. Despertei com seus passos leves, ergui-me. Não tinha mais medo algum. Vi-a nitidamente com seu vestido azul aproximar-se de mim com a mão.

Devagarinho sua mão agarrou o meu seio esquerdo e eu fechei os olhos. Abraçou-me e eu senti a forma redonda do seu corpo. A mão iniciou o ritual. A mão agora tinha um rosto, um corpo, um coração, um sexo. Eu estava predestinada ao sagrado. Armagedon: “Depois destas coisas, olhei, e eis que estava uma porta aberta no céu: e a primeira voz, que como de trombeta ouvira falar comigo, disse: sobe aqui, e mostrar-te-ei as coisas que depois destas devem acontecer”.

O regozijo.

Tia Dona

“Pois, quem pode saber o que é bom para o homem na vida, durante os dias de sua vã existência, que ele atravessa como uma sombra?” (Eclesiastes 6, 12).)

“Melhor é ir para a casa onde há luto que para a casa onde há banquete. Porque ai se vê aparecer o fim de todo homem e os vivos nele refletem.” (Eclesiastes 7, 2).)

 

Para Hildeberto Barbosa Filho

Diziam que ela era espírita. Mas conservava seus santos e rezava lá os seus mistérios. E, nem Deus, que é grande, sabia das romãs, o sexo da eternidade. Cultivava-se.

Tia Dona fôra desde “desde”, a Tia dona. Houve o tempo de casar-se: casou. Cultivou os leirões do seu amor pelo marido e senhor durante quase trinta anos até que a morte - estranha e reconhecível feiticeira – o levara dela numa tarde aveludada de dezembro.

Foi aí que aprendeu “outro tempo”: enlutou-se definitivamente. O negro lhe vestiria com sua cor de eternidade. Com essa sua peculiar cor de sempre.

E foi assim, vestida de negro da cabeça aos pés que Tia Dona atravessou os portões velhos da casa antiga, atravessou também a praça e as outras ruas, andando sempre silenciosa e a passos rápidos, como terço, a Bíblia e o véu. Tia Dona entrou na Igreja, sentou-se no último banco, ajoelhou-se, fez o pelo-sinal e ouviu submissa e voluntária a

missa de 7º dia do homem para quem  – pudor e despudor  – se dera: laço, rede, mãos, cadeias. Unicamente, desde sempre. E foi ainda mais quieta  – vertiginosa  – que traçou o mesmo acostumado caminho de volta. Em frente à casa, ainda houve tempo para abençoar a afilhada – fiel serva do casal. Fechou depois o portão, entrou na casa - lápide, de onde só sairia décadas depois para entrar no “tempo além do tempo” e lá plantar as romãs da sua eternidade.

Não gerara. Não quisera se desdobrar. Tinha decidido ser mulher sem começo nem fim.

Fazia largas ceias, esperando decerto, Deus e o apóstolo terreno da sua antiga carne. A última lembrança de palavra que lhe restara era amor. Amor, não. Devoção. Não foi por tristeza pela morte do marido que entumulou-se entre romãs e rosários, como contava a lenda. Fora, talvez, por predestinação. O luto ancestral de ancestrais mulheres.

Talvez, por isso, diziam-na espírita.

Mas as romãs, Tia Dona escondia-as até de Deus. Suas adoradas romãs eram para o licor rosado que acompanhava os seus devaneios comensais. Ah, e que ninguém entrasse em casa de calçados pés: sua terra sagrada. Mesmo o padre que aparecia,

oferecendo-se às confissões. Que nunca ouvia. Mas levava o dízimo. Confessar-se: somente

aos pés de Deus.

Sentia-se permanecida, nunca adormecida, nunca ameaçada. E, às vezes, ria e

chupava muitas laranjas. Tia Dona sabia que aos poucos ia se findando o tempo do luto.

Chegava sim, o tempo de outro sofrimento – ameno, mas perene, sem que se possa agarrarse às coisas, existido preso à matéria do que não se sabe, sem qualquer concretude, mas de

dor infinita. Chegava o perigoso tempo leve da melancolia. Tempo de procurar (ainda mais)

apoio nos episódios de Deus. Tempo de lavar os pés e sentar no quintal.

Toda manhã, sua afilhada fiel lhe vinha para abrir as janelas da casa (e não é preciso dizer dos olhares esperançoso de algum transeunte, de vislumbrar através dessas janelas, vagando pelos corredores infinitos da casa antiga, um vulto, o vulto desejado daquela mulher feia, mas secreta que, diziam, falava na hora alta da noite com os espíritos adormecidos). De que plasma invisível e impossível, alimentava-se a alma faminta dessa mulher de olhos grandes e negros? Ela tinha sempre na mão um livrinho aberto. Até o dia em que comeu “todo o livrinho” sob os olhos aflitos da afilhada. Tia Dona era uma mulher apocalíptica. Quando a afilhada dizia-lhe dos comentários que permeavam a rua, a dizerem-na espírita, em tempos do incontestável, ela sorria e lhe dizia de volta:

- O gozo de Deus é meu. (a afilhada nunca entendeu isso e, cuidava de repetir essa frase às pessoas, nas enfeitando-a com outras palavras que seu imaginário deixava desfilar. Até porque isso lhe dava certa glória na pequena cidade).

Mas, em que espécie de letargia divina se humanizou essa mulher? Pela manhã, aguava as romãs, varria o quintal, limpava o quarto, tratava dos peixes nas sextas-feiras (dia em que sua alma não aceitava o peso das carnes), ouvia o rádio, lavava as poucas roupas, fazia a lista da feira. Mas não chegara nunca mais à sala, nem para ver os gerânios na varanda, nem para ver os fantasmas vivos que se sentavam na praça em  frente, usufruindo do seu inútil e gratuito gesto. Pura esperança daquilo que não se sabe.

Ela inaugurara outro tempo. Inaugurara-se em outro tempo. Tia Dona se fizera moira de si mesma. Não era mais no tempo comum dos homens que se ocupava de viver: mas num mundo onde só cabe o que não mais cabe. É o tempo do muito, das coisas largas, da larga ceia das almas. Um tempo espesso em que se bebe o café forte e amargo. Agora, somente é doce o café bem amargo. A morte, sem assustar-se no vestido negro que usa, nas flores que cultiva, nas alfazemas com que se perfuma. A lágrima doce da constatação da finitude das coisas, o marido infiel que amou e que não surge mais na soleira e lhe entrega o chapéu e lhe pede comida. Mais ainda não era isso. Porque no tempo que lhe adentrava agora narinas boca lóbulos não cabe mais nem o passado nem o presente nem o futuro. O tempo, agora, era também o sapo que se alimentava do seu jardim, a mornidão das tardes, o cerzir das malhas, o esquecimento. Espécie de tempo úmido que seguia amadurecido nas romãs de Tia Dona.

Ainda assim, vez em quando, relia as cartas antigas, via os antigos retratos. E, num dia, como que pressentindo já a esperada morte, buscou a caixa cheia das provas da vida e queimou tudo, no quintal das romãs. Era a morte completa que ela estava plantando.

A morte sem deixar nenhum tempo de antes da morte para esse tempo de aqui. Ir nua para o momento mais certo. Durante mais de vinte anos, cultivou esse tempo inteiro, denso, sem sim nem não, sem tristeza ou alegria, sem pólos, sem começo, meio ou fim. O tempo para além das fotos amareladas e difusas na parede. O tempo como uma lembrança, apenas.

Assim, nas muitas tardes, Tia Dona cuidava de fechar os olhos e desfrutar a abundância

desse tempo que criara para si.

Tia Dona até riu muito, no último Natal, quando vieram os sobrinhos e sobrinhas com os filhos e as filhas, visitá-la. Cearam com ela, falaram muito. E beberam até o último cálice de licor de romã. Uma, insistiu no antigo vaso de cristal, que fora da avó, mãe de Tia Dona. Outra, no antigo conjunto de chá: “Para quê a senhora quer isso?”.

Levaram. E levariam tudo, nesse jogo vão das vaidades. Tia Dona apenas sorria. Quase

compreendia. Se fosse a ela compreender. Depois, foram todos embora, prometendo voltar no próximo Natal. Voltassem pois, para verem os próximos girassóis. Aliás, algo em que Tia Dona pensaria sempre, mais tarde e que não fruiu mesmo, fora a alegria daquela gente.

Ah, a vaidade da alegria. E porque estranhavam que ela não quisesse sair e falavam do sol, Tia Dona nunca saberia. Ela que, entre as romãs do quintal, tomava seu diário banho de sol, absorvendo a mornidão dos seus primeiros raios da manhã. E falavam tantas coisas, tantas insensatas sabedorias. Por isso, Tia Dona, à noite, desfolhou um rosário inteiro por eles. E, a julgar pelo barulho das rezas, de porta fechada – quem sabe não falou ela com seus espíritos em êxtase e carne puríssima...

Mas não houvera o próximo Natal. Tia Dona se despediu da vida aos sessenta e seis anos, vinte e quatro dos quais dedicados ao seu corado licor de romãs (talvez na morte,

todas as romãs sejam mais vermelhas e mais gordas. Dona tia, com essa promessa das romãs da morte, certamente traçaria bem estes caminhos de além de aqui...). Para o funeral, vieram todos. E levaram tudo: os antigos móveis, a caixa de jóias, os lençóis de linho, os talheres de prata, as licoeiras de cristal. Tia Dona ainda pedia à afilhada que não houvesse visitação.

Coisa que só foi aceito em virtude dos desmaios e espasmos da acostumada afilhada para fazer valer a vontade da defunta. Salvo o padre que viera encomendar a alma dela a Deus e os parentes, ninguém mais veria Tia Dona, nem na última e primeira hora. A afilhada ainda informou que Tia Dona queimara, anos antes, as fotos, as cartas, quase todos os papéis, exceto alguns documentos. No entanto, quando foram fazer a divisão dos santos de bronze, no oratório, encontraram a última surpresa de Tia Dona: junto com os documentos que restaram, um livro fininho.

Tia Dona, ao que parece, salvara da Bíblia, apenas dois livros: o ECLESIASTES e o APOCALIPSE, ambos com grifos legíveis, mas nebulosos. Para ela, talvez, não servisse a vaidade de uma Bíblia inteira.

Essa amputada Bíblia foi o que restou à afilhada. Mais o terço e os negros vestidos desbotados.

As Mulheres da Quadrilha

Quadrilha

(Carlos Drummond de Andrade)

João amava Teresa que amava Raimundo

Que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili

Que não amava ninguém.

João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,

Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,

Joaquim suicidou-se e Lili casou-se com João Pinto Fernandes

que não tinha entrado na história.

Para os três mal-amados de João Cabral de Melo Neto

Teresa:

Tenho a poucos centímetros de mim uma vasta possibilidade. Penso que poderia considerá-la, não fosse um outro mundo, vasto também, com rima, mas sem solução. João me ama, mas eu quero o mundo. À proporção que me afasto de João, o mundo se afasta de mim. O mundo quer outra mulher.

Maria:

Tenho um mundo de amor, todo meu. E poderia sair por aí cantando, pois o mundo vasto mundo de Raimundo é meu. Mas eu sou comum, pequena e o mundo me assusta um pouco: nasci pras rasas praias, e ele me oferece o oceano mais profundo. Tanta coisa nova que me assusta, como seu olho a desnudar meu corpo. Seu mundo é de chamas.

E o meu mundo teria de ser apenas um pouco morno de vez em quando. E no meu morno desejo, eu o vi: Joaquim. E o via todas as tardes, com seus livros de poesia debaixo do braço, com aquele olhar vago que os poetas têm, e os santos. Por que penso em poetas e santos?

Lili:

Nunca pude compreender porque aquele homem ficava horas em silêncio, lá na praça, me olhando, e nunca se chegou a mim. Ou ficava como se me esperando, já às seis e meia da manhã, quando eu, saltitante seguia para o colégio. Com dezoito anos eu apenas

queria aproveitar a minha irresponsável juventude. Levava a vida cantando, apenas. Aquele homem ficou sendo a pedra no meio do meu caminho. Cantando mesmo, para não sair do tom, chutava-a. Alguns colegas me disseram que era poeta e me sonhou musa. Como parar para ouvir isso com delicadeza, se o violão já insistia noutro samba? Eu amava era isso mesmo: a música, o som, as praças, o cinema e seus mitos, o sorvete, o chope gelado. E nunca quis mesmo compreender porque se preocupar em amar os homens tão logo, se esse é sempre o nosso fim. Cada novo dia eu o percebia menos alegre mais triste só poeta. E eu, eu era um dar de ombros. Com inocente deboche, cheguei até ele, um qualquer dia. Caiu o pano: esse homem, sem falar, me contou da sua caverna de amor. Tanto amor na minha frente, que quase me sinto culpada pelo meu vazio de amar. Insistiu em me dizer que se chamava Joaquim.

Não, Joaquim não existia mais: “o amor o comera”.

Teresa:

O mundo capotou e morreu. Eu fiquei pra matar meus sonhos. Hoje sei que Raimundo era apenas rima, mas eu achei a solução. Agora, são lápides, os anseios que tive.

Vim para este convento e fiz dele a sepultura de mim mesma. Cuido de regá-la e enfeitá-la com as flores frescas que eu mesmo planto nesse estrangeiro jardim. À noite, somente elas e Deus, assistem aos meus mudos e solitários gozos.

Maria:

Joaquim era a minha esperança de felicidade, de fertilidade. Só nele eu me multiplicaria. Mas ele de poeta passou a santo. E estou eu, aqui, depois de muitos anos, devota a ele. Vejo Teresa, uma feliz freira, organizando o coro infantil:  aceno-lhe. Volto a Joaquim era a mão que abriria a minha única porta. Como o amor matou-o antes, quero estar fechada, que ninguém me abra a porta. O amor suicidou-se e me matou o meu desejo.

Lili:

Depois que o amor comera Joaquim, eu vim para o Nordeste. Principalmente casei-me no Nordeste. Foi assim: era noite de São João e uma quadrilha nos separava.

Enquanto a quadrilha rodava, girava, ele me esperava, distante, no outro lado. E aconteceu: eu cheguei até ele, a quadrilha terminara. Muito sério ele disse que se chamava Jota Pinto Fernandes, e que ia entrar na minha história. E eu não lhe prometi nenhum amor.

 

Cárie na Flor

O que ela fica gritando eu não entendo.

sei que é pura esperança.

(Erik Axel Karlfeldt)

Era ali que ela sempre estava. Exatamente onde aquela mulher vendia suas frutas aos gritos. Chegava entre quatro e cinco horas da manhã, com seus vestidos mal feitos, de tecido ruim, surrados, cabelo opaco, franzina. Devia ter, logo que cheguei ali, dez ou onze anos de idade, olhava com o desinteresse de quem nada via, ou, via além...

Vivacidade? Só se encontrava nas flores frescas que trazia na cesta. Sim. Ela vendia flores.

Sol forte, chuva torrencial, e ela lá. Sempre lá. Entre quatro e cinco da manhã.

Onde morava e se morava, nunca o soube. Devia ser em lugar distante porque sempre

chegava arfante,  cansada, suada e suja, passando a mão na testa e por todo o rosto, desamassando a saia e sacudindo a poeira mais fácil. Também nunca soube se algum dia

teve sucesso como florista. Acho que não possuía talento nem vocação para tal.

Raríssimo alguém lhe emprestar um olhar, um simples olhar. Quando isso acontecia, perguntava-lhe onde ficava isso ou aquilo. Eu a via apontar o finíssimo e sujo dedo em direção a uma casa comercial qualquer, depois via a pessoa seguir caminho sem murmurar-lhe sequer um “obrigado ou obrigada”. E nem reparava na sua cesta de flores.

Era revoltante, triste até. Deus! Como era revoltante vê-la voltar com as flores já murchas no finzinho da tarde em direção ao ignorado. Ela, no entanto, não parecia dar

importância ao fracasso do dia, e no outro dia, já ao longe, entre quatro e cinco da manhã, eu divisava, ainda sonolento, sua figura, arrastando consigo a cesta de flores viçosa. Sendo telespectador mudo do seu mudo drama, ousei, um dia, sugerir-lhe que mudasse de local.

Perguntando porque – voltou para mim os olhos arregalados e profundos e quando falou notei-lhe uma cárie enorme, nos incisivos. Toquei-lhe no braço, não pensava que fosse tão fino, e mostrei-lhe o chiquismo da floricultura do outro lado da rua. Pensei que no outro dia não a veria mais. Engano. Ao acordar olhei da janela: lá vinha vindo a figura

raquítica daquela menina e seu patético ornamento.

Até hoje, ainda não sei se o que eu sentia era dó ou raiva imortal daquela menina maltrapilha que madrugava naquela esquina todos os dias e não vendia suas flores.

Inconscientemente obstinada.

Ardia de curiosidade de saber a origem das viçosas flores e o destino delas já murchas no fim da tarde. Nesse mesmo dia, lembro-me bem, peguei algumas notas e.

Falava com dificuldade seu português ruim. Cansaço da vinda, pensei. Depois, porém, concluí que sofria de asma. Era asmática a menina. Xinguei todas as mães cruéis, as diferenças sociais e o crescimento demográfico. Alguns transeuntes olharam-me curiosos e espantados enquanto ela me olhava  calma e ignorante. Foi então que me perguntou se eu queria uma flor, pronunciando as palavras num tom rotineiro. Como se fosse comum alguém se interessar pelas suas ridículas florezinhas. Notei que a cárie crescia. Sua cárie estava maior. No afã em que me encontrava, ofereci-me para levá-la a um dentista. Pensei até que não soubesse o que era, mas balbuciou um “Deur mi livi” e quase não me vende as flores. Dei-lhe então todo o dinheiro e mandei que o guardasse. (No outro dia, pela primeira vez, veria-a de vestido quase mais novo). Segui idiotamente com um ramalhete debaixo do braço, eu que era alérgico a flores. Coloquei-as num vaso com água e espirrei quase três semanas seguidas. Lembro-me agora, que guardei algumas dessas flores, secas, dentro de um livro. Acho que o perdi.

Nessa época, tive que viajar de férias. Quase três meses fora.

Um mês.

Dois meses, quase três... Estava “eu” de volta. Assim que desci apressado do carro, mais gordo, corado, colorido de sol e sal, meus olhos involuntariamente procuraram-na. Lá estava ela com suas flores. Não sei ao certo se ri ou balancei a cabeça num gesto inacreditado, revoltado, perplexo. Ardi de ódio e impotência ao notar-lhe sua magreza acentuada, seus olhos mais fundos e profundos e sua cesta cheia das malditas florzinhas.

Mais de dois anos se passaram. Continuei morando lá, e todos os dias TO-DOS os dias ela estava lá, ignorando e inatingível. Era parte da paisagem eloquente daquela rua.

Eu já não conseguia pintar na mente o quadro da rua sem ela. E suas flores e sua cesta, é

claro.

Foi nessa época que tive de me ausentar. Da rua. Da cidade. Do estado. Do país. Três anos se passaram e eu estava de volta. Não é necessário dizer que já ao descer do avião, meu pensamento a buscou. No taxi, embriagava-me o vinho tinto da memória. Havia um medo secreto em mim: o medo de que eu tivesse sido enganado e houvesse um tempo estático me esperando na cesta daquela menina em flor. E, esse medo, era também uma disfarçada esperança de vê-la. Quando cheguei na rua, já era adulta, a noite. Em casa, atirei-me na cama ansioso, esperando o dia seguinte.

Sonhei. Ela estava uma mocinha magrela. Uma mulherzinha. Despontando.

Despertando. Havia perdido aquele dente que me cariou. O cabelo cada dia mais opaco, a mesma cesta, outras flores. Depois, ela não estava mais lá e ninguém sabia nada a seu

respeito. Alguém me informava que não resistiu a uma forte crise de asma. Vi-a numa cama moribunda...

Despertei sobressaltado. Sós: eu e a escuridão. Virei-me para o outro lado e a segui horas a fio. Vi-a depositar as flores, no fim da tarde, num túmulo pobre. Quando cheguei perto para ler o nome que estava escrito na horrenda cruz... um barulho me assusta.

Olho para o lado e desligo o despertador. Ainda meio sonolento consulto o relógio, que

ficava na parede em frente à minha cama. Uma luz pálida atravessava as cortinas cerradas.

Meio dia e meia. Joguei fora as cobertas e precipitei-me para a janela, tropeçando numa das malas que caiu em cima do meu cinzeiro de estimação, despedaçando-o. Descerrei as cortinas. Havia sol forte. Abri as largas janelas. Meus olhos se fecharam com a agressiva claridade. Respirei fundo, abri os olhos e olhei em direção à esquina.

 

O Vinho Tinto da Memória

Não olhes para o vinho quando se mostra vermelho, quando (Provérbios 23,31))

Ela olha a mesa redonda de vidro, mas não a olha necessariamente. O que lhe chama a atenção é o objeto solitário: um cálice de faces finas e corado sangue borbulhando.

Tem medo e, pede para afastarem-no dela. Mas não há ninguém e o vazio lhe testa, vigia.

Eu tenho de vigiar-me – pensa. Mas sabendo que nascera mesmo para a fragilidade, para o pequeno. Levanta-se e vai até lá. Tendo que tentar, senta na cadeira, aquela perto do quadro que mandara pintar, quando andava aí pelo mundo com o marido. Nem isso. Restavam-lhe poucas coisas, mas ainda assim. Senta na cadeira e fixa apaixonadamente a taça que elege.

Pois que ninguém a teste, que ela não resiste aos testes. Aproxima-se devagarinho, devagarinho, esperando uma salvação, toca a taça e um estremecimento de prazer lhe passa pelo corpo. A taça é sensual, está meio fria. Fecha os olhos e segura-a, agora já com medo de que lhe tomem. Morosamente vai erguendo o copo que deixa na mesa a marca do suor da espera. E até ri porque se lembra de, quando criança, na festa da coroação de Maria. Ela fazia cachimbos no cabelo, colocava as asinhas de isopor enfeitado, um batom muito vermelho e, enquanto os fiéis entoavam o coro:

“Vamos coroar Maria...” ela ia baixando, baixando a coroa até chegar a cabeça da santa de barro pintado, com um enorme manto azul. Às vezes cantavam comprido demais e ela tinha que levantar novamente. Na última vez, de propósito quase não baixava a coroa, olhava os fiéis, o padre nervoso, a beata lhe fazendo gestos patéticos e desesperados. Mas, os diabinhos lhe cochichavam: Não coroa a Virgem! Não coroa! Enquanto o coro histérico já continuava:

“Vamos coroar Maria...”

Talvez os mesmos diabinhos que cresceram e lhe dizem agora: “leva à boca essa promissora taça vermelha, leva à boca”. Na igreja, ainda teve uma anjinha de asa e batom que lhe beliscara tão forte e fizera-a baixar a coroa de uma vez. E o coro explodira num:

“Aleluia, Aleluia”, Viva Maria, Mãe de”.

Incrível como tudo isso não me purificou - pensava ela.

Agora, toda purificação me vem desse vinho que me penetra quente, árido, macio. O vinho apascenta-me, o líquido vermelho em sangue mandando em mim.

O elo se desfaz porque é preciso. Estou só novamente (por que me vem a certeza de que esse era o seu estado comum?). Mas á o vinho. E há o sangue. Tudo rodopia e ela.

Libélula.

No fundo, ela sempre tivera necessidade de sentir a embriaguez das coisas. É absurdamente jovem ainda. É absurda. Nem alegre, nem triste, nem poeta.

Olho a porta por onde foram embora meu passado, meus anjinhos, meu marido, o filho que não tive, meu jardim, meus olhos, meus anseios, meu viço, meu amor: o que é pior. Pois é, esqueci-me de fechar minha porta. Às vezes é preciso cerrá-la.

A perfeição das coisas ao meu redor me sufoca, o vinho me entorpece, me confunde, me esclarece e eu recorro ao último gole. Ergo a taça e as antíteses. Na minha mão ainda uma aliança. E eu rio: o amor morreu, sumiu (e nem era pouco); o ouro, não: imortal, jaz no seu dedo.30

 

Segunda Hora

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Oração Reparadora

E neste mundo que te quero sentir.

É o único que sei. O que me resta

Dizer que vou te conhecer a fundo

Sem as bênçãos da carne, no depois,

Me parece a mim magra promessa.

Sentires da alma? Sim. Podem ser prodigiosos.

Mas tu sabes da delícia da carne

Dos encaixes que inventaste. De toques.

Dos formosos das hastes. Das corolas.

Vês como fico pequena e tão pouco inventiva?

Haste. Corola. São palavras róseas. Mas sangram.

Se feitas de carne.

Dirás que o humano desejo

Não te percebe as fomes. Sim, meu Senhor,

Te percebo. Mas deixa-me amar a ti, neste texto

Com os enlevos

De uma mulher que só sabe o homem.

(Hilda Hilst, Poemas malditos, devotos e gozozos)

 

A Puta de Deus

E eu era cada dia as suas delícias, alegrando-me perante ele em todo o tempo. (Provérbios, 9-30)

Roubei um vestido aberto por ele

Abri raparigas pernas e sorri.

Não me lembrei de pecar

Estive doida e santa.

(Valberto Cardoso)

 

Quando Deus foi me procurar, eu estava bêbada em mesa dos homens. Mesmo assim, Ele me pegou no colo, elevando-me a nobres altares. Eu, a puta de Deus segui contente, alturas tantas! Deitei na cama macia d’Ele. Senti trêmula e palpitante a rija carne de Seu santo espírito. Molhei-me de Deus. Ganhei diademas de ouro sagrado, brindei os mais saborosos vinhos com Ele (ha, quão eterna delícia a solidão perfeita com Deus!). Tão eterna, que enquanto o Senhor se banhava, desci e vim me fartar de novo na mesa dos homens: prazeres e delícias ao som maravilhoso dos salmos do pecado.

Cá embaixo, roubaram-me manto, véu, diadema de ouro. Puseram-me escarlate batom. Abriram generosas fendas em minhas vestes – tudo com tal respeito! Cantei e dancei para todos. Bêbeda, de novo bêbeda, sonhei alvura dos lençóis divinos. Dormi assim, toda bêbeda e toda linda no meio da rua: nua de Deus.

Muitos foram os homens que me olharam, olhos de carne nos olhos da carne, mas não me tocavam mais (eu era agora, a linda e louca puta de Deus – escarneciam esses ímpios). Mas bem que ajuntou gente, quando aquele vulto chegou-se a mim e, em voz de filete d’água fria, disse-me:

- “Já recobri a minha cama com acolchoados, com lençóis de linho fino do Egito. Já perfumei o meu leito com mirra, aloés e canela. Vem, saciemo-nos de amores até a manhã, alegremo-nos com amores.”

Mas eu, entre lisonja e temor, respondi-lhe:

- Meu Senhor, Tua puta sente falta dos regozijos dos homens, das santas farras, deles, do profano vinho. “E os que me buscarem, cedo me acharão”, bem sabes Tu. Eis que Deus então me segurou o queixo e mirou-me fundos olhos:

- “És apenas mulher louca, a Alvoroçadora: de nada sabes”. Mulher que se mulheriza em vão.

Pensei: “Deus fala bonito!”.  De repente, todo o meu corpo clamava seus louvores, ardia na esperança do fogo desse inferno de Deus. Aí, cheguei-me para Ele e o beijei: Sua divina boca então se pôs rubra do meu prostituto batom, Puta vaidosa – Deus me elegeu. Assim, ante a multidão afoita, jurei a meu amante que haveria de consumir toda a carne do meu corpo e do meu espírito, em oferendas a Ele.

O povo, agora perplexo e sacro, batia palmas e gritava vivas, trazia-me véu, jogava-me arroz. Procurava juiz. Mas, quanto a mim: não me quis casar não. Porque adoro dizer (salivada boca):

- Sou eu, a puta santa de Deus.

 

Marias

- Quem comigo às Santas Marias, Ó pastores, deseja vir? (Frédéric Mistral)

Ela vem com seu destino incerto, impreciso. Ela vem com seu olhar tão vago, que é lacuna. Ela vem com uma coisa assim, que é tão assim, que não se explica. Aliás, do seu quarto morno e quente ao seu porão escuro e frio, nada se explica. Ela vem pelas ruas, nuas, cruas, suas. Ela vem vindo com o seu nome que transcende, acende. Ela vem mais

maria que todas as marias. Com seu pecado santo. Ela vem louca, com sua calma agonia de mulher. Ela vem como uma memória glória. Ela vem com seu santuário pornográfico, com seu prostíbulo de orações. Ela é uma igreja de pecados. Ela vem e enfim, passa por mim. E eu, pobre José, aceito-a doce a trair-me. A querer descobrir-lhe assim, numa única vida, sua alma. Ela vai. Eu sempre fico.

 

Carpintaria

No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré. Foi a uma virgem, prometida em casamento a um homem chamado José, da casa de Davi. E o nome da virgem era Maria. (Lucas 1, 26-27)

Chamava-se Maria e era virgem. Era virgem e apaixonada por José. Numa história sem anjos era difícil apaixonar-se por José e permanecer virgem. Mas as coincidências a convenceram da predestinação mesmo sem “Gabriéis” e “espíritos santos”.

Mas José desapaixonou-se de Maria. Daí Maria começou a esperar outro José e visitou

quase todas as carpintarias: Josés casados, velhos, novos, brigões, brutos. Até o seu antigo José engordara, ficara um pouco bicho. E pela primeira vez, por pura fraqueza, Maria chorou. Nem um só José carpinteiro, puro, bom que não a quisesse como. Ela então, numa crise de desespero, jejuava, jejuava, jejuava. Pensou em se matar. Matou seus sonhos e conheceu Gabriel. O anjo. E não foi feliz.

 

As Cartas de Sara

Salva-te, se queres conservar tua vida, Não olhes para trás, e não te detenhas em parte alguma da planície. (Gênesis 19, 17))

A primeira carta que ela recebeu foi numa quarta-feira pela manhã: um envelope branco, sem remetente, escrito em tinta verde. Foi aí que começou a ter esperança. Era uma mocinha verde, desde então. Todas as semanas, lá vinha a carta verde, às vezes perfumada, outras não: perfumes doces, suaves, rosas. E ela cada dia mais verde. No terceiro mês ela estava tão verde que, pela primeira vez desde aquelas cartas, sentiu um medo de pedra.

Ninguém desconfiava do conteúdo das cartas e nem onde Sara as escondia. No quarto mês ela já estava menos verde e as cartas mais escassas. No sexto mês, ela até chorou. No oitavo mês, ela jogou a carta no chão. Já ela estava desbotando. As cartas agora vinham escritas em vermelho. Um curioso qualquer, apanhou e já o mistério não era mistério. Na carta, letras vermelhas diziam:

“Sara, não olhe para trás”, num cheiro cítrico.

Sara se assustou e, no nono mês, com a carta na mão, ignorou o conteúdo e olhou para trás. E seu futuro petrificou-se. Sara de pedra.

 

Tão-somente essa cruz

Adoro Cristo na Cruz

(Adélia Prado)

Espero uma carta de Cristo desde que me apaixonei por sua cruz. Desfolhei rosários inteiros, entoei salmos, bebi muito vinho, fui a missas. Eu, Madalena de mim.

Gastei óleos, unguentos, escrevi versos. Atravessei “vias-crucis”, corpo sangrando em

chagas sempre abertas. Mas, que espero eu, do que não é nem homem nem Deus? Espero esta carta que não virá: Espero-a na hora terceira. É pois, na hora terceira que todos seremos crucificados. Escreve-me ao menos uma palavra de despedida, com esse sangue abundante que vejo jorrar das feridas abertas em flor, qual flor. Ou então, me mande mensagem menor: me mande tão-somente essa cruz que fere teu ombro eternidade afora.

 

Rituais

Matou-se, mas num dia de serenidade tão grande que qualquer violência parecia impossível. (Lúcio Cardoso, Crônica da casa assassinada)

Banhou-se com óleos de amêndoas. Sentou-se depois na cadeira, na sala de jantar e pôs-se a olhar a mesa posta dos dias fáceis. Levantou-se e mirou o quarto: cheirando a lavanda, os lençóis bem limpos. Os banheiros exalavam o habituado odor de eucalipto. A varanda, o quintal; varridos e limpos. Alimentado o cão. Nenhuma teia de aranha sob o teto.

Lençóis brancos e fardas escolares alçavam voos, no varal. Louça lavada, comida cheirosa – chegou então à sala de espera: decoração impecável. Suspirou: misto de dignidade, orgulho e alívio. Olhou mais uma vez. Tudo tão perfeito!

Destoava apenas aquela grossa corda, um pouco encardida, presa resistentemente ao teto, esperando-a.

Rainha na cozinha

Mas o rosto é doce, próprio a enternecer as mulheres da cozinha, feito eu. (Adélia Prado)

“ Já tô cansado, você desfilando nessa cozinha feito uma rainha destronada.”

Rainha da cozinha: marido meu falou isso; ele bêbedo de muita cachaça.

Entronchei a cara, botei mais cachaça no copo dele e continuei: rainha na cozinha. Coisa

mais bonita. E eu ria-me toda. Por dentro (que marido se constrange de ver a mulher feliz\ de feliz algazarra). Enquanto isso cortava displicentemente os tomates vermelhos. Ele agoniado, cachorro espumando, me cubando por trás. Depois, cadeira puxou com força e saiu. Ligou a televisão e se pôs a invejar as rainhas de lá. Eu não. Eu nunca me acostumei a andar feliz, logo aprendi a não desejar esses jovens – cueca e suéter, que passam por mim. A mim, me basta esse, que com raiva me insulta de rainha coitada de cozinha. Agora mesmo, descascarei as batatas e eis que me resta ainda a metáfora toda do peixe para retalhar em postas.

 

Comungado banquete

Sim, seus seios são cachos de uva,

e o sopro das suas narinas perfuma

como o aroma das maçãs.

Sua boca é um vinho delicioso

que se derrama na minha,

molhando-me lábios e dentes.

(Do Cântico dos Cânticos)

Há tanto que se fazer na minha cozinha: descaroçar as azeitonas (da memória), esquentar o forno, esfriar o ventre no mármore frio da pia, lavar a louça suja (do passado), tirar as escamas pra que meu amor saboreie os peixes do meu sexo. Há tanto que se fazer na minha cozinha: retalhar a massa (da dor), untar os tabuleiros (da alma), e não se esquecer de por a água pra ferver, cortar todas as cebolas da casas, por de molho a carne no vinho (ou no leite de gordas tetas), temperar o bife e oferecê-lo macio ao amado.  Preparar o molho de tomate e menstruá-lo sobre o macarrão palustre (do corpo). Há tanto que se fazer na cozinha pra que meu amado se sente nela pra comer: temperar os camarões vermelhos e fritá-los na frigideira quente (de mim). Não se esquecer da taça do  vinho branco que brota das safras dos meus vinhedos subterrâneos. Nem se esquecer também dos guardanapos para limpar os lábios úmidos e cansados. Deixar à mesa, exposta e vermelha: a maçã úbere e colocá-la na boca do amado (essa maçã gostosa). Há tanto que se fazer na minha cozinha antes que meu amado se deite nela e coma em mim: enfeitar o cheiro de sexo do atum. Ter café fresco (que meu amado não o quer frio nem requentado). E ter também o licor da saliva ou de minhas tetas – esse não deve faltar. Por sal no feijão (do amor), e cuidar de preparar o molho rosado para os bolinhos de bacalhau do (norte de mim). Ah, meu amado gosta muito de molho de pimenta vermelha (por isso arde o nosso sexo). Por último, limpar a cozinha, deixá-la bem limpa e cheirosa de um impossível perfume.

Depois, há ainda muito que se fazer para que meu amor não queira comer em cozinhas alheias de alheias mulheres... Mas hoje, tudo posto, apenas cuido de esperar esse meu homem com a boca enfeitada de sorrisos perversos e molhados nessa cozinha arrumada, doida que ele me coma, (enquanto na parede, Cristo perpetua a Nossa Santa Ceia).